O ensino superior e o mundo académico, em geral, são fontes de inovação, centros de conspiração e até de revoluções em vários momentos históricos, e, ao mesmo tempo, compostos por instituições tradicionalistas, elitistas e caracterizadas na teoria das organizações (Mintzberg) como uma burocracia profissional. Daí que a nova organização dos ciclos de estudo no ensino superior, conjugada com o modelo participativo nos órgãos de gestão, entre outras mudanças, possam ser definidas como uma revolução, na qual participei integrando o Conselho Pedagógico do IST no desenvolvimento da sua missão e competências, independente das representações que o compõem.

Existe, nas instituições de ensino superior, uma tensão permanente entre a tradição e o conservadorismo com a constante mudança e procura do desconhecido, inerentes ao saber e à investigação que se produz na academia. O conhecimento é um elemento de poder e interesse para a sociedade. O peso que esta lhe atribui é uma forma de medir a predisposição para a excelência e desenvolvimento, tendo Portugal cedo reconhecido essa importância com a criação da Universidade de Coimbra em 1290. Veja-se também o exemplo recente do enorme investimento feito pelo governo chinês em investigação e desenvolvimento enquanto fator diferenciador no mundo. Esta realidade, de séculos, levou à manutenção de uma relação, que se quer, simbiótica da Universidade com a sociedade e os poderes constituídos, mas sempre com os conceitos de independência e autonomia presentes. Todavia, esta dicotomia leva a reconhecidas singularidades nos processos de mudança.

Os objetivos da Universidade voltam a ser estratégicos para o país, para a sua defesa e independência industrial e comercial, num mundo que todos reconhecem globalizado. O atual paradigma do processo de ensino vai mais além do que a existência duma linha de montagem ao estilo Taylorista, ou de um sistema de reprodução acrítico da ideologia dominante. Desta vez, a motivação é demasiado forte, o mundo mudou e dar/receber aulas/conhecimento a usar sebentas da primavera de 1991 já não é suficiente.

A última vez que se teve uma oportunidade de mudança, com o chamado processo de Bolonha, ficou-se aquém do esperado, comparável ao famoso cozinhado de esparguete. A base, ficou toda a mesma e para se dizer que se fez alguma coisa meteu-se um molho por cima e quem tinha interesse ficou satisfeito pelos relatórios e documentos estarem coerentes.

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Felizmente, a preocupação de preparar os estudantes para as profissões que ainda não existem já chegou ao quotidiano de muitos envolvidos: Professores, Estudantes, Funcionários e Decisores, havendo bons exemplos disso pelo país. Há um sítio onde a revolução que agora chega, por imposição legal (Decreto-Lei n.º 65/2018), é algo que vai em linha com o trabalho de anos e com a filosofia defendida, exposta e testada desde o início do século XX.

No Técnico, foi sendo introduzida pela responsabilidade partilhada de um conjunto de pessoas que partiram pedra e moldaram mentalidades, serena, mas que eficazmente criaram a necessidade de mudar, dando espaço a um lugar onde a crítica e adaptação do sistema se faz mais abertamente. Um desafio ambicioso salvaguardando a identidade, credibilidade e exigência de uma Escola que se quer a ombrear com as melhores do mundo.

Mesmo querendo mudar, e com as motivações certas, há que fazer isto sem perder a caracterização do IST, imortalizada pelo seu fundador nas notas histórico-pedagógicas de 1922[1]. Este livro, de Alfredo Bensaúde, embora já conte com uns anos, ainda hoje norteia o princípio de ser Estudante e Professor do Técnico. Princípios de responsabilidade e de exigência que fazem com que a independência seja valorizada, explorada e, todos sejam tratados como seres capazes de livremente identificar a melhor alternativa, como refere Alfredo Bensaúde. Em quase todas as opções, os estudantes fazem uma escolha consciente, nada mais do que uma análise de economia de tempo e de esforço, incluindo participar em aulas totalmente lotadas em lugares sentados, no chão, de pé, ou no exterior da sala pela janela, se isso for compensador. Doutra forma, acrescentava ainda Bensaúde, “a frequência das aulas, por melhor regidas que estas sejam, seriam diminutas”.

Um dos maiores orgulhos de quem passou pelos órgãos de gestão do IST tem de ser o sistema de garantia da qualidade de ensino, único no mundo[2], envolve docentes e estudantes de forma transparente e consequente. Um sistema confiável que permite aos estudantes, através da Escola, reconhecer e agradecer o esforço e o mérito de quem se destaca enquanto docente excelente, ao mesmo tempo que é possível identificar aspetos a corrigir. Este reconhecimento consegue materializar-se de diversas formas, quer seja por um prémio anual, quer na avaliação docente e também ao longo da progressão na carreira ou ainda, por um processo de auditoria, partilhado entre estudantes e docentes, às disciplinas que corram menos bem. Processos que comprovadamente valem a pena e têm levado a uma melhoria contínua.

De 2013 para a frente muita coisa mudou numa das melhores Escolas de Engenharia da Europa. Coisas que, agora, até parecem não terem feito sentido doutra maneira. Alguém imaginaria, hoje, o que é coordenar a vida científica e pedagógica não sabendo quando tinha de fazer um exame? A alteração do processo de marcação de provas de avaliação, foi muito contestado quando apresentado, de forma disruptiva, as datas passaram a ser definidas no fim do ano letivo anterior em reuniões de coordenação que envolvem estudantes e docentes. A organização atual permite melhor trabalho e simplificação de um processo acessório, reduzindo a burocracia das múltiplas solicitações para os Professores. O esforço para tornar a estrutura mais ágil não é de menosprezar e é possível valorizar o trabalho das pessoas e as boas práticas, ainda para mais se são do melhor que há no mundo, a maior parte mantida por funcionários não docentes. Como tanto as virtudes como os vícios são hábitos, e toda a nossa vida é um feixe de hábitos, há que estimular bons hábitos!

Para contrariar a ideia do Professor investigador e não educador, foi criado um programa para o início de carreira dos professores[5 em que se pretende que o professor seja um elemento chave no ensino com o objetivo de conciliar boas práticas pedagógicas com investigação de excelência.

Além destas ideias e programas é fundamental participação e discussão para desconstruir mitos e construir novos valores. Dois momentos foram fundamentais para discutir e divulgar o pensamento para uma escola de futuro. As Jornadas Pedagógicas organizadas pelo Conselho Pedagógico, em 2014, foram o primeiro marco para criar um ponto de situação conjunto, o segundo, em 2016, para discutir para onde se queria ir. Estes eventos acabaram por ir mais além do que isso, tornaram-se verdadeiros facilitadores de mudança. Participaram palestrantes nacionais e estrangeiros, evidenciando que não era preciso inventar a roda, já alguém no mundo tinha passado por esta necessidade. Esta onda de mudança foi-se propagando e foram-se notando diferenças no quotidiano.

A própria forma de avaliação não é assunto tabu. Os exames são incapazes de atingir o que se pretende duma escola de ensino superior, onde já o fundador do Técnico, há cem anos, dizia que estudar, “em geral, mais para o exame do que para saber” levava “quase sempre, sem inconveniente imediato, esquecer tudo quanto se aprendeu, passada que esteja essa formalidade”. Assumindo o falhanço do exame, por si só, na garantia da passagem de conhecimento e adaptação para uma profissão, que pode ainda não existir. Em alternativa, existe a avaliação tendencialmente prática realizada em contexto formal ou pelo reconhecimento das competências adquiridas nas atividades extracurriculares. Felizmente, a evidência de construir um carro de corrida elétrico a partir do zero, entre outras, demonstra a sobrevivência da ideia original de Alfredo Bensaúde.

O Técnico está a assistir a uma revolução que é das mais lentas e tem de ser das mais eficazes. Nos últimos dois anos formalizaram-se as condições para alterar os métodos de trabalho de docentes e estudantes. A Comissão de Análise do Modelo de Ensino e Práticas Pedagógicas (CAMEPP)[3] realizou um diagnóstico interno e um exercício prospetivo de comparação internacional de forma a adaptar os curricula a uma formação socialmente mais relevante e virada para o exterior, cumprindo com o preceito da missão do Técnico. A visão que encontramos nas Notas Histórico Pedagógicas (1922) parece transposta para o relatório final da CAMEPP onde no sumário executivo se escreve que “os novos curricula enfatizam a escolha dos estudantes, a multidisciplinaridade dos conhecimentos, o impacto social e as experiências fora da escola e das áreas de conhecimento nucleares e de especialização.” Este relatório foi apresentado, analisado e discutido nas diferentes estruturas do IST assim como sessões públicas abertas a toda a comunidade. A revolução terá o seu ponto fulcral pela aplicação destes princípios[4], levando toda a comunidade académica para uma nova realidade.

O processo que está quase a atingir o seu auge não seria possível sem uma onda de preparação e discussão singular que pode ser um exemplo para qualquer decisão estratégica nacional. Estando desencadeado o processo para eleição do novo presidente do Técnico, é fundamental que este movimento não pare. Não tenhamos dúvidas, o Técnico e o ensino superior português vão ser melhores e os aprendizes portugueses têm bons mestres para os desafios que ainda não existem.

Estudante Doutoramento, Bolseiro de Investigação, Vice-Presidente do Conselho Pedagógico do Instituto Superior Técnico 2015-2017

[1] Bensaúde, A. (1922). Notas histórico-pedagógicas sobre o Instituto Superior Técnico (I. S. Técnico, ed.)
[2] Torres, A.; Ribeiro, J.; Castro, L. (2015). Engaging students in the teaching quality assurance : a driver of higher education excellence (EAIR 38 th Annual Forum in Krems, Austria)

[3]Comissão Análise do Modelo de Ensino e Práticas Pedagógicas (CAMEPP). (2019). Relatório Final.
[4]Oliveira, L., & Aires Barros, R. (2019). Princípios Enquadradores para a Reestruturação dos Cursos de 1o e 2o Ciclo do Instituto Superior Técnico 2122.