Talvez não tenha havido palavras mais repetidas ao longo desta campanha eleitoral das autárquicas como as que ouvimos de todos os candidatos à Câmara Municipal de Lisboa: “Precisamos de mais transportes coletivos!” É já um clássico dizer-se que as pessoas precisam e desejam mais transportes coletivos para que possam ter uma alternativa ao automóvel para se deslocarem nas suas viagens dentro e fora da cidade. De facto, internamente, Lisboa não tem uma má rede de transportes coletivos. Tem um bom sistema de Metro (pago parcialmente pelo Orçamento do Estado) e uma rede de autocarros que cobre a cidade de uma ponta à outra (pago, parcialmente, até há pouco tempo, pelo Orçamento do Estado). Naturalmente, não será ainda o sistema de Madrid ou Londres, mas o PIB do país também não é o mesmo de Espanha ou do Reino Unido. Assumiram assim alguns candidatos, se não todos, que os Lisboetas não escolhem o transporte coletivo porque ainda lhes faltam mais autocarros, ou até, de forma mais ingénua, porque o transporte coletivo não é totalmente gratuito (já me debrucei sobre este tema que considero ser um disparate num artigo anterior no Observador).
O desempenho de um sistema de transportes urbanos é o resultado de um equilíbrio entre procura e oferta, mas esse ponto de equilíbrio não é apenas dependente do custo. Não se pode ignorar que a vida das pessoas não é linear. O padrão de mobilidade das famílias é muito mais complexo do que isso e o nosso comportamento não se altera por decisão autocrática de um presidente de Câmara ou outro qualquer órgão de poder. É preciso adaptação e outro tipo de condições no terreno que permitam essa alteração de comportamento. Se uma mãe de família precisa de se desviar para ir buscar o filho ao outro lado da cidade, e tiver rendimento disponível, não o fará necessariamente de autocarro, mesmo que este seja totalmente gratuito, porque simplesmente o tempo de viagem não é compatível com o tempo disponível para fazer esse desvio. Se o tempo em autocarro for muito superior ao tempo no automóvel, mesmo com o congestionamento, essa escolha do transporte coletivo não se fará facilmente. Provavelmente, o que é necessário é bom transporte escolar. Agora altere-se o foco da população de Lisboa para a população que vive fora, que vem todos os dias trabalhar em Lisboa, e este efeito é ainda mais expressivo devido às distâncias e variabilidade de origens e destinos das viagens.
Não haja a mínima dúvida que, sendo possível a escolha, a maioria dos cidadãos deslocar-se-ia de automóvel, especialmente para percorrer grandes distâncias. Talvez não tenha havido invenção mais impactante sobre as nossas vidas modernas do que essa máquina, que rapidamente nos coloca em todo o lado, porta-a-porta, e com grande conforto. Acontece que o seu impacto é enorme. No ambiente – hoje em dia ainda a maioria dos veículos são a combustão interna – mas também no espaço ocupado por estes veículos estacionados, assim como o tempo perdido em filas intermináveis de congestionamento só temporariamente debeladas pelo aumento da capacidade viária –, com grandes custos de investimento. A luta contra esta utilização exagerada do automóvel é real e permanente nas grandes áreas urbanizadas do mundo desenvolvido e em desenvolvimento; não é apenas uma história para contar aos miúdos na escola. O tempo perdido no congestionamento tem consequências graves na redução da produtividade das sociedades assim como na qualidade de vida e saúde das famílias. Mas, mesmo assim, as pessoas continuam a escolher os seus automóveis e fazem todos os esforços possíveis e impossíveis para evitar mudar de modo. Não é por isso de surpreender que continuem a entrar na cidade de Lisboa tantos automóveis.
Mas há gente surpreendida: “Porque é que estas pessoas não deixam o carro em casa se já têm um passe social tão baixo?” é, muitas vezes, a pergunta. A resposta talvez esteja ligada a uma das bandeiras – intermitentes é certo – de Carlos Moedas durante a sua campanha, prontamente ignorada por Fernando Medina e restantes candidatos, que parecem não saber do assunto ou nem sequer querer falar dele. O Estado português decidiu financiar, com o apoio de fundos europeus, a construção de uma suposta linha circular na rede de Metro de Lisboa. Há várias cidades por esse mundo fora com linhas circulares, por exemplo, Madrid e Pequim. Um aspeto interessante dessas linhas, e que talvez não surpreenda o leitor, é a de que estas têm genericamente a forma de uma circunferência. Uma forma geométrica interessante em que os pontos da linha estão todos à mesma distância de um ponto: o centro. Este tipo de linha de metro é implementado para permitir viajar rapidamente de uma área limítrofe a outra área limítrofe sem ter de se passar pelo meio da cidade. São excelentes linhas de conexão com as restantes porque tendem a cruzar todas as radiais. Acontece que a futura linha circular não é uma circunferência, é uma sucessão de curvas e contracurvas, esticada, parecendo-se mais com uma tripa do que com alguma coisa que se assemelhe com uma circunferência. O leitor observe o mapa da futura rede e veja que a distorção é tão grande, que a distância mais pequena no seu interior é de 600 metros entre a estação de Entrecampos e a estação Roma (tempo a pé de 10 minutos), e na sua distância maior, entre o Campo Grande e o Cais do Sodré, uns cerca de seis quilómetros. Não se parece, portanto, com nada que se assemelhe a uma circunferência.
Dir-se-ia então que o nome desta linha não vem do formato, vem do facto do metro circular sem parar, sem exigir nenhum transbordo a quem anda dentro da cidade. E esse projeto é talvez o erro mais grave que já vi ser cometido num investimento em redes de transportes coletivos na cidade de Lisboa nas últimas décadas (na área metropolitana, talvez o prémio possa ser dado ao sistema SATU de Oeiras). O governo propõe-se, com a ajuda da União Europeia, colocar todos os passageiros vindos na atual linha amarela a mudar no Campo Grande para aceder à tal nova linha circular. Exceção feita a esse “grande” volume de passageiros que viaja de Odivelas para Telheiras. Tudo para evitar que as pessoas que circulam de Alvalade e Avenida de Roma para o Campo Pequeno e Entrecampos possam fazê-lo sem “transbordar”. Não sei se terá havido muitas queixas dos munícipes que fazem este percurso todos os dias de Metro – não me constou – até porque podem bem andar a pé, de bicicleta ou de autocarro que é muito mais rápido. Quanto às restantes ligações entre estações dessa linha circular? Estas já estarão facilitadas pelo completar da linha a Sul, com as estações da Estrela e de Santos, fechando a malha.
A solução seria a construção de uma linha em loop entre Odivelas e Telheiras, de resto como existe em outras cidades; observe, por exemplo, a rede de Metro da cidade de Melbourne, na Austrália, que tem vários loops. Isso iria permitir a penetração de passageiros daquele eixo da Área Metropolitana de Lisboa na cidade, diretamente e sem transbordo, junto dos principais destinos de trabalho. Não existe estudo que possa demonstrar a captação significativa de passageiros para o Metro com a criação desta pseudo-circunferência. O único estudo que se pode encontrar online é o Estudo de Impacto Ambiente bem intencionado mas com frases como: “Para os passageiros que acedem a Lisboa pela linha amarela do METRO (estações de Odivelas, Sr. Roubado, Ameixoeira, Lumiar e Quinta das Conchas), e ainda Telheiras, a expansão do METRO resulta numa reestruturação da conectividade – estes passageiros beneficiam do aumento da frequência no troço da viagem realizado sobre a linha circular mas aumentam o número de transbordos para alguns destinos”. “Para alguns destinos”! Não é para alguns destinos é para a maioria dos destinos e estes são os viajantes que vêm de fora de Lisboa, aqueles que se quer dissuadir de usar o carro. Por outro lado, o estudo mede bem as vantagens do fecho da rede a Sul, no Cais do Sodré. O grande problema é que não separa esse fechar da malha da existência de uma rede circular, que são duas coisas diferentes. A linha circular não precisa de existir para que com a existência das novas estações da Estrela e Santos os passageiros não possam agora distribuir-se muito melhor pelos eixos terciários da cidade, por exemplo, a partir da estação do Cais do Sodré. Continuar a sacrificar as pessoas que entram na cidade todos os dias a partir das regiões em que podem efetivamente encontrar casa para morar, é totalmente antagónico aos objetivos de aumento de sustentabilidade na Área Metropolitana de Lisboa. É gerador de tráfego automóvel interno que, por certo, irá prejudicar o centro da cidade.
Importa reforçar aqui a mensagem de que um transbordo não tem apenas associado o seu tempo perdido em mudança de modo e o tempo extra de espera pelo outro veículo. Está demonstrado, há anos, que a perceção do esforço da transferência pode ir de duas a três vezes o tempo efetivamente gasto. Cinco minutos de tempo de transferência (que é otimista) podem ser percebidos como 15 minutos e assim dissuadir as pessoas de utilizar o transporte coletivo. Isto significa que as pessoas preferem muitas vezes percursos mais longos sem mudança de modo (ou veículo) do que mais curtos com transbordo. Se tal estudo de procura tivesse sido efetuado perceber-se-ia que com a solução em loop (ou laço) haveria muita gente disponível para vir de Odivelas para Sul, através do Campo Grande, passando pelo Cais do Sodré e subindo para Norte, para estações como Anjos ou Arroios, apesar de ser geograficamente mais próximo mudar no Campo Grande e descer diretamente para essas estações. Tal acontece, porque os viajantes numa rede urbana terão sempre a vontade de evitar o transbordo. Não nego que a futura linha irá beneficiar alguns lisboetas, tenho a certeza que sim, mas duvido que isso traga o impacto que a cidade precisa para se livrar dos já famosos carros que entram todos dias. Linhas de Metro têm um custo alto de construção e são um investimento elevado de toda a população, não apenas da população de Lisboa. Criar uma linha amarela direta entre Odivelas e Telheiras, excêntrica à cidade, parece-me uma decisão irracional. Será que ainda vamos a tempo de mudar?
Em conclusão: assumir que a população simplesmente tem de se adaptar às mudanças impostas top down porque alguém terá encontrado uma receita milagrosa não é, e nunca vai ser, uma estratégia de sucesso em áreas urbanas de países democráticos. Falhar em reconhecer este aspeto básico, mas fundamental, é não ter percebido nada do que é política de cidades. A sustentabilidade vai continuar a ficar longe!
No que concerne ao futuro da cidade de Lisboa, não há soluções milagrosas. As cidades são sistemas complexos que não dependem apenas de si. É preciso reconhecer a coragem do anterior executivo na questão da mobilidade ciclável, que levou a uma transformação positiva e que se deseja imparável na mobilidade da cidade, mas é também preciso reafirmar que soluções impostas, pouco refletidas e aceleradas, por mais que bem-intencionadas, podem ter efeitos contrários ao pretendido. As transições de paradigma, em democracia, não se fazem de revoluções, mas de esforço diário de discussão, análise de alternativas, apoio técnico, e acima de tudo demonstrando abertura ao contraditório. Será que isso foi feito na conceção desta linha circular?
Declaração de interesses: a minha casa em Lisboa é junto da linha amarela. Não fui contactado por parte da campanha de Carlos Moedas ou de nenhuma outra campanha. O meu propósito com este artigo é reforçar aquilo que já vários especialistas afirmaram no passado em relação a esta linha. Mas parece que sem nenhum efeito.