A filha do Zé nasceu. Instantaneamente vieram à memória dois acontecimentos que envolveram o recém-Pai babado e ao curto mas coeso grupo de amigos que o acompanhou na jornada que o conduziu à parentalidade: o dia em que nos conhecemos há quase dez anos, e aquele em que, chorosos, o deixámos no aeroporto de Lisboa.
A história da sua partida foi afunilada na dos 100 mil Portugueses que abandonaram o país nesse ano – ‘menos 10 mil do que em 2015’ afiança um “irritantemente otimista” cabeçalho do jornal de negócios.
Fez-se uma pequena festa no grupo de chat onde, salvo duas ou três exceções anuais, conseguimos acompanhar a vida uns dos outros. Dividíamos uma vivenda no bairro das Terras em Belém a que até batizamos à revelia do senhorio, mas ano e pouco volvidos, o quarteto estava apartado por milhares de quilómetros Europa fora: o Zé em Paris, o João em Colónia, eu em Aarhus (Dinamarca). Para a pequena e recém-chegada Rosa, nascida francesa mas com o pai Português (e três orgulhosos tios ‘lá fora’), e para os filhos dessa geração que compreensivelmente preferiu constituir família além-fronteiras, Portugal será a terra dos avós onde passar o Natal e, com sorte, o Verão. Na semana em que nasceu, outros dois amigos de cá encontraram também a alegria da paternidade, respectivamente, em Londres e Viena.
Em 2012, a propósito das celebrações do cinquentenário da crise académica onde estive, escrevi um pequeno texto sobre não empregar o sobre usado termo “Geração” tendendo a “escapar-me desta simbólica palavra, demagogicamente excedida, patente de impositor cunho colectivista, tendenciosa homogeneizadora” num longo queixume por não reconhecer “suficientes elementos de ligação entre os meus congéneres portugueses – numericamente dispersos, atomizados e mundividentes – para semelhante agregador em consciência assumir, evitando concomitantemente as implícitas falácias de excessiva generalização”. De facto, não enfrentámos a ditadura ou nos confrontámos com a guerra colonial, os marcos videiros dos presentes no convénio de então. Há, porém, um mantra geracional colectivo aplicado aos que nasceram na nossa era e que nos agremia como aos estudantes de ’62; que carimba e castiga, exprime, homogeneíza e condena a minha geração: Emigração. A diáspora Portuguesa, atingiu em 2019 – 2.6 milhões de habitantes ou 26 % da população residente em território Português nesse ano. Essa diáspora, que se reduzira dois por cento nos dez anos anteriores, aumentou 35 % entre 2010 e 2019, quase seis vezes mais do que na última década em que apresentara um valor positivo (1990 – 2000). Mais 126.500 cidadãos partiram entre 2016 e 2021, mais do que em toda a década de ’70. Emigraram quase três vezes mais “dos nossos”, por ano, desde que Costa tomou o poder, do que o sucedeu na última década da ditadura.
A caracterização etária desta população foi feita no documento “Relatório para a emigração” e “Analisados os dados sobre a estrutura etária dos fluxos emigratórios portugueses, conclui-se, sem surpresa, que estamos perante um movimento constituído, no essencial, por pessoas em idade ativa jovem”. Em alguns dos principais destinos (Reino Unido, Suíça) mais de 85 % dos emigrantes estão em idade activa. Em idade de assentar e em idade de procriar. Um dos dramas nacionais e que afecta diretamente a sustentabilidade do nosso modelo de educação (em vinte anos, será o da segurança social) é a falta de crianças e jovens em muitas escolas do país. Por cada dois emigrantes, existe apenas um Português com menos de 15 anos, valor que diminuiu em 23 mil ao ano desde 2011. 1.4 % ao ano (2.8 % por ano na Região Autónoma da Madeira). Escusado será dizer que em 1970, esta fatia da população era de 35 %.
Na minha geração, os que ficaram ou regressaram, que viram os congéneres partir, um a um, reconhecem-se no poema de Martin Niemöller: primeiro foram os enfermeiros, mas eu não era enfermeiro, logo não me preocupei; depois os engenheiros, e os professores e até os juristas que encontraram pouso em Bruxelas onde a comunidade dos serventes da comissão engrossou. A geração das expectativas goradas, do elevador social avariado, de uma ideia de progresso e mérito que só se realiza quando acoplada a um bilhete de avião. Por fim foram os médicos – o instituto Goethe encheu-se de recém-licenciados, saídos da vizinha FCM, a caminho da longínqua Suíça que respeita o seu trabalho e especialização como o SNS não o faz. Pode um país subsistir sem nós? O último a sair que feche a porta.
Há quase dez anos, o estudo coordenado por Rui Machado Gomes, era taxativo: “apesar das estatísticas existentes serem pobres na metodologia empregue e limitada na sua amostra, está reconhecido pelos estudos internacionais publicados nos últimos anos que Portugal é um dos países Europeus onde o escoamento é mais acentuado”. Para o justificar, o Professor Doutor João Miguel Prata Roque teorizou numa crónica no Expresso que “Quem baza quer casa” argumentando que “que quem não encontra uma habitação condigna, se vá embora”. Eu lamento contrariar o célebre jurisconsulto, mas não é a aspiração à propriedade que move esta massa informe de quadros superiores (e não só), em busca de uma vida melhor como parece ser epitomo do Português. É a busca de um salário condigno. A informação, recentemente partilhada pelo estudo da fundação José Neves de que “enquanto em 2011 um jovem adulto com um curso superior tinha, em média, um salário 50% superior ao de um com o ensino secundário, essa diferença diminuiu para 27% em 2022” explica o brain drain. O salário médio liquido aumentou apenas 1 € no último ano e apenas 120 € desde 2011 (crescera quase 6 % ao ano na década anterior). A paralisia castradora do país que aparta a geração mais “bem-preparada” não é política – afinal, experimentámos quatro modalidades governativas desde 2015 – é tão simplesmente a estagnação da média salarial.
Independentemente do trajecto de vida, do grau de formação, do projecto pessoal ou da classe social, o caminho é apenas o da balada de Jorge Cruz: “Ir embora/Pode mesmo ser a solução/ ver trabalho o frio compensa pela aflição” (Fronteira, Diabo na Cruz). Eis um retracto da minha geração.
Nos primeiros anos das Universidades, a conversa sobre emigração substituiu qualquer planeamento de um futuro em Portugal. Passos Coelho mandou os Portugueses emigrar, mas em 2023, a emigração decorrida sob a governação de Costa – tanto temporária como permanente – suplantou a dos anos da Troyka, com mais de meio milhão partidos desde 2016. Uma boa parte destes, como o meu amigo, nunca mais voltará. O governo esmola os emigrantes – que vencem 300 % da média de cá – com uns cêntimos no IRS e choca-se que não lhe respondam, que ignorem uma medida insultuosa para quem enfrentou com bravura “A fera da fronteira”. Mas na contabilidade da política os emigrantes não contam: não estão sindicalizados nem adensam manifestações, detém uma anedóctica representação parlamentar e se erram em participar eleitoralmente, os seus votos são escamoteados como imperdoável encenação da recontagem aquando as últimas legislativas. Em 2005, para descrever o líder laranja que se prestava a votos, o DN contou como nas primeiras Europeias “Cavaco afastou Santana escolhendo-o para encabeçar a lista do PSD às Europeias”15; 36 anos depois, a fé no país que resta é tão escassa que Bruxelas deixou de ser um “afastamento”, uma “gaiola dourada” mas uma recompensa e os líderes do Bloco e da Iniciativa Liberal ponderam reformar-se da política no parlamento Europeu. As juventudes partidárias sempre ávidas de novas injustiças para combater, não veem a maior delas todas: o exílio auto-imposto de uma geração cuja distância impede de fazer concorrência na ocupação de assessorias ou claque nos comícios das campanhas eleitorais. Em nome do direito à subsistência, abdicaram do de pertença, de ter um lugar ao que chamar casa, sina que transportarão para a sua descendência.
Na minha geração apenas vemos os nossos amigos em memórias e fotografias, perdemos-lhes a voz e só os reconhecemos nas redes sociais. E eles,já só conhecem Portugal de trás do solitário ecrã do telemóvel, que recordam o calor Português acometidos à frieza Europeia, a quem o país negou a possibilidade de um futuro, continuarão como agora: esquecidos, apátridas, adiados, longe.