Faleceu Mário Bigotte Chorão (1931-2020). Figura ímpar do nosso panorama intelectual, mas que não aparecia na comunicação social, nem creio que tivesse conta em redes sociais.
Influenciou gerações e gerações, que foram integrando uma fatia importante da intelligentzia nacional, sobretudo jurídica. Era professor de Direito, filósofo do Direito em especial, além de, ao longo da sua fecunda vida, ter cultivado várias áreas do mundo jurídico.
O nome certamente ecoará entre os juristas, mas, como o mundo universitário do Direito não tem marketing a promover os seus maiores, pode ser um ilustre desconhecido para a maioria das pessoas. As quais certamente venerarão (justamente) um matemático ou um químico célebres, mesmo um poeta ou um escritor, ou, para citar John dos Passos, até um pugilista ou uma foca amestrada, mas, se não tiver sido político ativo e mediático, pouco relevo será tributado a um jurista.
Mário Bigotte Chorão deixou-nos há um par de dias. Os seus alunos recordam o seu ar imponente e elegantemente passeante na sala de aula, a sua voz cativante e o seu verbo interrogativo, interpelando as consciências. Havia sempre nele um chamamento ético, uma elevação metafísica, um apelo ao peso levíssimo da História, dos Clássicos, das fontes mais castálicas.
Um olhar vivíssimo certamente via mais além. Era também dessas pessoas que sorria com o olhar, dando uma sensação de comunhão ao interlocutor. Bom amigo, bom anfitrião, bom colega. Homem de palavra, de trato. Sempre dos primeiros a responder a uma carta, a agradecer um livro, numa letra desenhada elegantíssima, nunca com fórmulas feitas que parecem carimbos gastos, mas como manifestação de quem se interessa.
Era um gentleman, como o são os verdadeiros. Daquela delicadeza que começa pela alma. E que se manifesta sem untuosidades e salamaleques, natural como quem respira. Disso se distinguindo completamente dos “homens de corte” já retratados por Sá de Miranda.
Mas enquanto algumas dessas pessoas livres acabam por se enquistar numa certa rudeza ou aspereza, seguindo as vias solitárias do anacoreta, ele era uma pessoa convivencial. Não apenas amigo das tertúlias (falava com entusiasmo do Sabadoyle no Rio de Janeiro, já batizado de “último salão literário”), como da conversa em tête à tête. Mais que isso: era convivencial porque, mais ainda que simplesmente tolerante (o que seria já muito – para mais hoje), gostava de ouvir sincera e atentamente os outros, e de dialogar realmente com eles. Tinha uma grande eloquência na afirmação dos seus pontos de vista, mas jamais aniquilaria um oponente no diálogo, nem utilizaria um argumento menor, e muito menos desleal. A sua grandeza impedia-o como que num interdito físico; mas era uma alta vibração moral e intelectual.
Era, assim, um grande pedagogo. Não fui aluno dele, mas ouvi-o em muitas aulas e conferências, que ecoam no meu espírito ainda. O pedagogo não é o que, para se elevar, torna o fácil difícil e o difícil tão eriçado que impossível de alcançar. Na sua narrativa conversável, de uma serenidade que vinha do fundo de uma alma em paz, manava um rio tranquilíssimo e racional de clareza.
Era daquelas pessoas cujo discurso coerente se poderia escrever, taquigraficamente, com boa pontuação, à medida que falava. Sem ser monocórdico ou com aquela pose professoral que dita verdades-feitas.
Preciosidade, só bem avaliável por quem sabe, Bigotte Chorão era dos raríssimos a quem nunca ouvi um queixume, nem uma crítica sequer a um colega, a um burocrata, a um estudante. Nem uma única vez. Vivia com muita alegria (alegria serena, sem frenesim de entusiasta em transe) o seu trabalho de professor universitário, por entre os seus livros imensos num equilíbrio saudável com a Família e os Amigos.
No plano da investigação, sem querer inventar a pólvora, aderira a uma corrente secular, clássica, o realismo clássico, que em Direito tem como expoentes Aristóteles, a experiência jurídica romana e São Tomás de Aquino. O que não deixava de o municiar com bases sólidas para estar igualmente atento a reptos atualíssimos, desde logo os colocados pela bioética e questões afins, no fio da navalha das grandes decisões da vida e da morte…
Apesar de não recusar os grandes desafios jurídicos do nosso tempo, não era uma alma carcomida pelas teorias especiosas nem atormentada pelas dúvidas corrosivas. A sua coerência levava-o a uma tranquilidade modelar, que deve ter inspirado muitos alunos, e certamente intrigado alguns…
Dele escolheria sobretudo três livros, para lermos e relermos, não apenas em sua homenagem, mas como seu legado fundamental. Livros que espero não se percam: a sua Introdução ao Direito, e os Temas Fundamentais de Direito, ambos com a chancela da Almedina, e o volume de recolha de vários ensaios editado pela Imprensa Nacional, Pessoa Humana, Direito e Política.
Só se a sua obra e a sua memória se perdessem é que nos teria deixado. Mas não: o seu exemplo permanece e a sua obra continua a inspirar-nos.