1 A LAVANDARIA

O “Luanda leaks” é o último episódio a dar visibilidade aos biliões reciclados para a economia legal, pasto de enriquecimento de banqueiros, políticos, empresários, auditores, supervisores e escritórios de advogados, as rodas dentadas da complexa engrenagem do branqueamento de capitais. Portugal “lavandaria da cleptocracia angolana”, ou, “lavandaria de vários tipos de criminalidade organizada, de máfias de todo o tipo”, no dizer de Ana Gomes, qualifica-nos hoje internacionalmente e leva a UE a discutir a forma de obrigar os estados membros a cumprir a directiva sobre o “dinheiro sujo”,  visando Lisboa.
Em simultâneo, o Montepio regressou à ribalta noticiosa pela onda de buscas policiais,  pela catadupa de contra-ordenações e  condenações do Banco de Portugal (BdeP), ao banco e a administradores, e pelo alarde da notificação através de anúncio publicado em jornal, de Tomás Correia (TC), com este a dizer-se vitima de perseguição “por aquela gente” — referindo-se ao BdeP — e a evocar a prescrição dos factos, uma das raras vezes em que fala da verdade.

As notícias agora reveladas esclarecem-nos algo mais sobre o que o regime (Governo,  supervisores, poder judicial) há muito sabiam: o Montepio foi arrastado para a engrenagem da “lavandaria”.

Recordando: com a chegada de TC, em 2004, o Montepio começou a dar sinais do caminho que ia trilhar, em meados de 2005, quando criou, estranhamente, o “Banco Montepio Geral Cabo Verde (BMGCV)” destinado, unicamente, a clientes estrangeiros (a encerrar este ano, juntamente com o BIC, de Isabel dos Santos, por decisão do Governo cabo verdiano, na  sequência do “Luanda leaks”). A estranheza acentuou-se de seguida quando o Montepio concluiu que África não era estratégica  e decidiu vender as suas posições em Moçambique, Guiné e Cabo Verde (Caixa Económica de Cabo Verde), o que ocorreu em 2007/8, excepto… surpresa das surpresas … o “BMGCV”.  A estranheza ganhou coerência, em 2010, com a instalação do consulado do offshore de Singapura na sede da Mutualista,  conjugada com o regresso a África (Angola,  Moçambique e projecto para o Congo Brazzaville – intermediado pelo empresário futebolístico José Veiga). O “interesse” por  África durou, enquanto TC liderou o Banco Montepio (BM), em 2015, tendo desaparecido com a saída deste.

As imagens televisivas e comentários que nos servem  o  “Luanda leaks” e  as quatro lavandarias  angolanas a operar em Lisboa (Eurobic, BNI-E, BPA-E e BAI), trazem luz ao desinteresse/interesse  por África, da presidência de TC, ao desfilarem  organizações e “caras” familiares ao Montepio recente.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

No financiamento a Isabel dos Santos, encontramos os “estarolas” do costume: o BES, a CGD, o BCP e…. a bengala Montepio. Reencontramos Ricardo Salgado e José Guilherme. A Uria Menendez, de Proença de Carvalho, que assiste a família dos Santos, Ricardo Salgado e TC (defendido por Mota Pinto advogado, irmão do Mota Pinto administrador no BM). A auditora PwC (ligada a Isabel durante vinte anos) que “auditou” as  eleições que reelegeram TC, por duas vezes (mas que afinal… não auditou… nem nunca foi contratada para o efeito… conforme declarações prestadas e  relatório  que entregou em tribunal), e  substituiu, ano passado, a KPMG (catorze anos a validar o Montepio, o BES e o BESI). O EuroBic deu visibilidade a Teixeira dos Santos, o ministro das finanças do Governo Sócrates, que sancionou a compra do Finibanco pelo Montepio, e mais tarde foi convidado para CEO do BM). O BNI, no qual o Finibanco Angola vai ser agora integrado, desvenda José Guilherme e Mário Palhares, a quem TC já tinha “oferecido” 30% das acções sem que este despendesse um cêntimo. O BPA-E (Mário Palhares de novo), administrado pela filha de Proença de Carvalho, e extensão do BPA-Angola, acaba de fornecer Pedro Leitão (ex-administrador) para CEO do BM. Estamos igualmente recordados do apagão informático no repport das transferências para offshores, às Finanças, que apenas envolveu o BES e o Montepio.

Uma engrenagem operada por poucas caras, com muitos cruzamentos e coincidências.

2 O REGIME

A Comissão Parlamentar de Inquérito à CGD, identificou a existência dum “triângulo nefasto” a operar no país, composto por banqueiros, empresários e políticos –  cujo período áureo terminou com a queda do governo Sócrates, e o seu declínio com a queda do BES, de Ricardo Salgado, seguido do afastamento de TC do banco do Montepio – e as evidências de que a Mutualista foi desviada do seu rumo natural, capturada por estes interesses, acumulam-se.

O arrastamento do Montepio para a engrenagem do branqueamento de capitais foi mais do que evidente e contou com a vista grossa e assobiar para o ar de governantes e supervisores. O gato, no Montepio, não só não se escondeu como se exibiu com arrogância, porque era um gato do regime.

O BdeP, nas acusações, delineia o  perfil da  gestão da presidência de TC: gerir com dolo, branquear capitais, enganar os supervisores e falsificar as contas, a par do esquema de Ponzi que gerou a “bolha” que não pára de crescer, igualmente do seu conhecimento, e que levou conselheiros seus a questionar: “querem que rebente a bolha”. É, assim, difícil não atribuir ao supervisor, algum “sacudir d àgua do capote” desencadeado acossado pelo  “Luanda leaks” que funcionou como saca-rolhas da “determinação” das acusações do BdeP, agora e com prescrição no horizonte próximo,  após muitas outras abrangidas  por ela já terem sido arquivadas.

Esta é a realidade que o regime consentiu e protegeu, como se viu no vergonhoso “beija-mão” público de apoio à recandidatura de TC , em 2019, e, agora, no estender da passadeira vermelha para a  sua “saída honrosa” do Montepio, branqueando que os últimos doze, dos cento e oitenta que conta o Montepio, foram os mais negros e dramáticos da existência desta instituição, vividos na  mentira e para a mentira, capitaneados por “gente” sem idoneidade, contra marés de maus resultados e vendavais de denúncias.

3 O PARLAMENTO

Tomás Correia é o vilão do desastre no Montepio, agora em risco de sobrevivência e vilipendiado, mas não esteve só, nem o conseguiria sozinho. Contou com a negligência (para não dizer mais) de governantes e supervisores que falharam no dever de tutela e fiscalização.

O Parlamento, que já se ocupou de todos os bancos nacionais, nunca se debruçou sobre o Montepio não obstante a legitimidade acrescida que lhe advém, de 170 anos de ajuda de Estado — centenas de milhões de dinheiros públicos não recebidos e agora malbaratados – através do benefício de isenção de impostos – e do dever de fiscalizar o funcionamento do Estado, de defesa das instituições sob sua tutela e do erário público.

O Montepio é o capítulo da crise financeira em Portugal que falta resolver e está por contar.

É um elefante no hemiciclo de S. Bento.