O Observador publicou a 7 de Maio um texto de Ricardo Pinheiro Alves (RPA) intitulado: “União Europeia: Nunca mais aprendemos” em reação ao artigo de opinião da Comissária Europeia Elisa Ferreira – “Só juntos conseguiremos sair da crise” – que foi igualmente publicado no Observador dois dias antes. Sendo inquestionável que cada um tem direito à sua opinião, já é mais duvidoso que se escolham os seus próprios factos. Assim, dados os erros factuais, as omissões e insinuações do artigo de RPA, é importante clarificar algumas questões para beneficio dos leitores do Observador.
Começando pelas insinuações, o artigo refere que Elisa Ferreira é uma “Comissária politica da Comissão Europeia”. Uma vez que todos os Comissários são propostos pelos governos nacionais, e dado que a Comissão é um órgão de natureza política, todos os Comissários são por natureza políticos. RPA prossegue, dizendo que a função de Elisa Ferreira é defender os interesses da Comissão Europeia e não os dos países, e ainda menos os dos povos da Europa.” Uma leitura rápida do Tratado da União Europeia permitirá constatar que a Comissão não defende os seus interesses próprios, mas os interesses gerais da União (art.º 17), o que inclui os interesses dos países e dos povos da Europa.
RPA afirma também que “a Comissão é uma estrutura burocrática que quer concentrar em si mais poder”. A Comissão Europeia detém os poderes que lhe são conferidos pelos Tratados que foram negociados e assinados pelos Estados membros e ratificados pelo Parlamento Europeu e pelos parlamentos nacionais, que representam, precisamente, “os países e os povos”. O texto de RPA deve, por isso, ser lido nesta perspetiva de enviesamento inicial.
O texto continua identificando “quatro afirmações (…) que não são verdadeiras”. A primeira é que o “choque do Covid não é simétrico, ao contrário do que é apresentado pela Comissão Europeia”. É curioso: um choque externo que afeta todos os países, regiões e setores da UE – como comprovado pelas recentes previsões económicas da Comissão – é claramente um choque simétrico, embora a intensidade do impacto varie naturalmente consoante a situação de partida de cada um.
O maior risco identificado por Elisa Ferreira, é que a recuperação seja assimétrica, em resultado das diferentes capacidades orçamentais, estruturas económicas de cada país e à evolução da pandemia. Este é um dos argumentos principais do artigo, que RPA pelos vistos não percebeu. Recordo o parágrafo em questão do artigo inicial: “Embora o impacto final deste choque simétrico externo em todos os Estados-Membros ainda não seja conhecido, é desde já evidente que existe um risco de recuperação assimétrica. As estruturas económicas dos Estados-Membros e das regiões são muito diferentes, estando algumas delas dependentes de sectores que podem levar mais tempo a recuperar, como o turismo, os transportes ou a cultura. Também a taxa de infeção e a escala da doença evoluíram de forma diferente nos Vinte Sete. Além disso, vários Estados-Membros e regiões têm uma grande capacidade para apoiar as suas economias, enquanto outros não só não têm recursos como esgotaram a margem de manobra orçamental para investimentos”.
RPA afirma por outro lado que “é duvidoso que seja necessário um esforço conjunto dos países para a retoma” e que não são apresentados argumentos para o justificar.
Mas é precisamente por causa do risco de uma recuperação assimétrica, conjugado com as diferentes capacidades financeiras nacionais, que se impõe uma resposta europeia conjunta.
Deixar a retoma depender de respostas puramente nacionais é deixar instalar-se no mercado interno níveis insustentáveis de distorções de concorrência entre as empresas dos países com maior capacidade financeira para conceder ajudas públicas, e as outras. O que poria em risco o funcionamento do mercado interno ou mesmo a estabilidade do euro.
Deixe-me dar-lhe um número: na atual fase de emergência, a Comissão Europeia decidiu em março, e bem, adaptar as regras que regulam a concessão de ajudas públicas às empresas (e regulam precisamente para nivelar as condições concorrenciais). Desde então, foram autorizadas ajudas dos Governos às suas empresas num valor superior a 1,8 biliões de euros – 8 a 9 vezes o PIB português. Mais: um único país é responsável por um pouco mais de metade deste montante de ajudas. É fácil de perceber porque é que o mercado interno não pode funcionar na base de condições tão desiguais entre empresas concorrentes.
É precisamente por essa razão que a Comissária defende e afirma no seu texto que “os instrumentos desenvolvidos à escala da UE serão por isso essenciais para compensar as diferenças de capacidades nacionais. Não se trata aqui de uma opção, mas de um imperativo, dada a necessidade de preservar a nossa maior vantagem económica que é o mercado único”.
Por outro lado, e num verdadeiro processo de intenção, RPA afirma que a Comissária “não quer uma resposta diferenciada” porque “precisa de justificar o papel da Comissão Europeia”. Confunde duas coisas: a importância de uma resposta europeia, pelas razões já invocadas, com a necessária adaptação dessa resposta europeia às diferentes realidades nacionais. As duas são necessárias e não incompatíveis, como escreveu Elisa Ferreira (sublinhado meu): “Neste contexto, as soluções regionais de base local que contribuam para a coesão e a convergência em toda a União, com o máximo apoio financeiro aos mais vulneráveis, são essenciais para evitarmos o risco bem real de uma recuperação assimétrica e de um desenvolvimento económico cada vez mais divergente entre os Estados-Membros e no interior dos Estados.”
A quarta “afirmação” é mais uma acusação à Comissária de “propaganda” à Comissão por “desprezar o principio de subsidiariedade” e uma repetição, de novo, da “concentração de poder” na Comissão.
RPA ignora certamente que, sob proposta de Elisa Ferreira, responsável pela Coesão e Reformas, uma das primeiras medidas adotadas pela Comissão Europeia na atual emergência sanitária foi precisamente dar latitude aos Estados Membros para direcionar os fundos estruturais para os sectores mais afetados pela crise, permitindo liquidez às PMEs, proteção social para trabalhadores, incluindo em situação de desemprego temporário, e reforço do sector da saúde, deixando cada Estado Membro decidir e agir em função das suas necessidades mais urgentes. Quando a Comissária teve a preocupação de descentralizar a resposta, onde é que está a concentração de poder?
Por fim, RPA acusa novamente Elisa Ferreira do “vício bem português” de “atirar dinheiro para cima dos problemas”, “bem representado pelos fundos europeus que a Holanda e a Alemanha nos deram e que desperdiçámos nos últimos 33 anos”. É a sua opinião, feita dos estereótipos que tornam o debate europeu tão difícil e que tão mal têm feito à Europa e a Portugal, mas que revela um total desconhecimento do que é a política de coesão em Portugal.
O que é realmente interpelador nesta afirmação é que o autor desconhece que os “fundos” não foram “dados”: os fundos são a contrapartida negociada e aceite por todos da criação do mercado interno de modo a compensar os diferentes níveis de desenvolvimento entre regiões que estão à partida em condições estruturalmente muito diferentes. Ou RPA pensa mesmo que uma empresa dos Açores tem as mesmas condições de competitividade que uma empresa sediada em Hamburgo?
Quando Elisa Ferreira refere as vantagens do mercado interno, que RPA classifica como “propaganda”, está precisamente a lembrar que “desde a sua criação, estima-se que o mercado único tenha aumentado o PIB da UE em cerca de 8-9 %. Ao invés, o seu desaparecimento poderia custar a alguns Estados-Membros até 15-20 % do seu rendimento per capita real”.
É que, como refere a Comissária, “os benefícios do mercado único ultrapassam largamente as contribuições dos Estados-Membros para o orçamento da UE.” Ou, por outras palavras: os fundos investidos nas regiões com maiores problemas estruturais são em grande parte recuperados pelos países ditos contribuintes líquidos sob a forma de contratos para as suas empresas ou de exportações.
“Nunca mais aprendemos”, diz RPA no final do artigo. Eu acredito que nunca é tarde demais para aprender.