“ … Um dos grandes males da nação foi que a fidalguia se não enraizou nos seus campos, não exerceu um verdadeiro papel de civilizador – um papel de direção e proteção dos seus povos – antes se fez parasita do povo e do poder central. Os maus efeitos desse vicio sentem-se ainda hoje no país …” (António Sérgio, em Breve Interpretação da História de Portugal; 1ª edição de 1929).

Será sempre difícil explicar porque é que Portugal, uma nação com 900 anos de história, fronteiras estáveis, um período há quatro séculos precursor do renascimento e da globalização, se vem afastando dos padrões de desenvolvimento cultural, económico e civilizacional de uma Europa na qual pretende ter uma integração que vá para além da incorporação geográfica.

Antero de Quental no seu discurso de 27 de Maio de 1871 no Casino Lisbonense e publicado à data com o título Causas da Decadência dos Povos Peninsulares aponta três como causas principais deste atraso – a Contrarreforma dirigida pelos Jesuítas; a centralização política da monarquia absolutista; e o sistema económico resultante dos descobrimentos. Esta questão foi alguns anos depois retomada por António Sérgio que na sua obra Breve Interpretação da história de Portugal nos descreve de forma crua o que em seu entender são as causas deste nosso atraso crónico.

Para ambos os autores este é atribuído ao centralismo e a uma sociedade civil acomodada na sua dependência do estado e por isso incapaz de se sustentar. É o centralismo que nos torna dependentes, estimula a dependência, prosterna qualquer sentimento de autonomia e limita o desalinhamento pelo receio de este não ser bem recebido. O centralismo gera dependência e a dependência favorece o centralismo. É um sinergismo de sinal positivo.

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Tanto Antero de Quental como António Sérgio são autores centenários com uma análise presciente da sociedade portuguesa, a qual devia, até por isso, ser objecto de uma leitura mais cuidada. Ambas as obras citadas são pequenos trechos indispensáveis para quem quiser compreender o atraso português, as suas causas e manifestações e, para o que é objecto deste texto, mostram-nos que sempre houve em torno das instâncias do poder um séquito de empresários e “políticos crisálida” (agentes em estado de metamorfose entre política e negócios), ávidos por dinheiros públicos, por rendas garantidas.

Portugal enquanto nação, à exceção dos tempos ledos dos Descobrimentos, nunca se organizou enquanto país competente de forma a ter uma balança de transações equilibrada. Nunca teve produção interna que suprisse as suas necessidades de consumo e assegurasse a sua sobrevivência. E se ao longo destes 9 séculos as contas públicas lá se foram equilibrando foi porque sempre se encontrou um dinheirinho extra (não ganho por nós) que equilibrou as contas e permitiu pagar as dívidas. As dívidas para o consumo ou para outras coisas tão básicas como segurança e/ou defesa, foram contraídas sempre que por estes motivos tivemos de recorrer a auxílio exterior. A este dinheirinho extra António Sérgio apelidou de “minas”.

  • a primeira destas e antes dos descobrimentos foi a “mina” do comércio marítimo que os povos e cidades do norte faziam e no qual usavam os nossos portos atlânticos como pontos de passagem para destinos no Mediterrâneo.
  • depois veio a “mina” da Índia, e da abundância de produtos orientais cuja riqueza nunca serviu para fomentar uma produção nacional, mas ajudava a pagar o que se importava, ou seja, tudo.
  • com a perda da independência perdeu-se esta “mina”, mas outra, a do Brasil veio rapidamente  substituí-la. Primeiro em produtos agrícolas e depois em ouro e pedras preciosas.
  • na sequência das invasões francesas o Brasil teve a sua independência e de novo era necessário alimentar os cronicamente dependentes do erário. Inicialmente e num período conhecido como Devorismo, estes chacais alimentaram-se do espólio de absolutistas e Miguelistas. Mas esses bens não eram suficientes. Os “comedores” eram muitos e o pecúlio já estava delapidado por predadores de outro calibre, que ou por nos terem invadido (Franceses), ou nos terem “ajudado” (ingleses) souberam bem apropriar-se do “seu” quinhão.
  • outra “mina” surgiu então com o Fontismo e as suas obras públicas – e com esta a Dívida. Como o dinheiro abundava na Europa e era fácil aceder a empréstimos, assim e através de obras públicas, necessárias ou não, lá se ia arranjando dinheirinho para aqueles que em bandos organizados (partidos políticos) que se sentavam à mesa do orçamento. Durante este período o país modernizou-se bastante, criou algumas infraestruturas necessárias, mas o centralismo nunca permitiu que a iniciativa da sociedade civil se desenvolvesse e a dependência do estado, do erário e de uma renda garantida foi-se sempre acentuando.
  • quando vinham as crises europeias (monetárias), lá ficávamos a tinir, sem dinheiro e sem capacidade de pagar (dívida e juros), mas como as crises eram cíclicas também a abertura da “mina” da dívida o era.
  • outras “minas” surgiram e foram secando sem que nunca o seu provento deixasse lastro no tecido produtivo e nos permitisse autonomia e sustentabilidade. Foi assim que surgiram a “mina” das colónias africanas, e a dos fundos europeus após a nossa entrada para a CEE. Esta última um período de “fartar vilanagem”, talvez o período mais fértil para a formação de “crisálidas”.
  • uma palavra para as três últimas “minas”. A primeira, a dos impostos, que não sendo inesgotável, tem sido aplicada de forma a sugar parte da população até ao tutano; a segunda, a do turismo, essa tomada como fonte inesgotável de divisas, mas que a crise pandémica de 2020/21 bem tratou de por as deficiências a descoberto; e uma terceira, essa mais recente, a do Plano de Recuperação e Resiliência, ficou conhecida por “bazuca” europeia.

Esta última é constituída por um conjunto verbas a serem distribuídas pelos habituais comensais do orçamento. Mas aqui aplicou-se um truque novo. Aproveitou-se o zeitgeist do “ambientalismo” e o léxico desta “novilíngua”, e quaisquer projetos com o rótulo de “verde”, “sustentável”, “ecológico”, “amigo do ambiente”, “biológico”, etc, são suficientemente apelativos para ser apresentados à população como uma inevitabilidade, uma imposição europeia, ou com maior pesporrência, como um farol, um sinal da nossa liderança (porto de Sines, indústria do hidrogénio, gasoduto europeu, etc) e uma evidência “canônica” da recuperação do nosso atraso crónico. Mas no fundo caro leitor, é só propaganda para esconder o habitual – os negócios dos que se sentam à mesa do orçamento e das suas crisálidas.

Mas quando tudo parecia inventado, eis que surge uma nova “mina”. Passo a explicar-me. Esta última surgiu mais recentemente, também à “boleia” das políticas públicas, muito à semelhança do que assistimos no período do “Fontismo”. Tal como neste último período, também esta “mina”, que designo de “ganso de ovos de ouro” pretendeu “incentivar o tecido económico,” ou melhor, “algumas empresas de serviços técnicos e de consultadoria” à custa dos fundos europeus. Mas ao contrário do “Fontismo” não cria dívida suficiente que desequilibre o orçamento. Cria sim, expectativas, é um bom elemento de propaganda, tem um custo inferior ao das obras e é inesgotável. Exemplos da “mina do ganso dos ovos de ouro” estão patentes nas obras públicas que têm vindo a ser apontadas como eminentes e imprescindíveis – novas pontes (Douro); projecto ferroviário de alta velocidade; o novo aeroporto de Lisboa, projecto do hidrogénio, SIRESP (não, não é engano. Este é um bom exemplo. O SIRESP foi iniciado em 1999, teve as suas crisálidas que migraram do governo de Cavaco Silva e para lhe dar uns tons democráticos com elementos do PS, mas que até meados de 2015 teimava em não sair dos projectos, estudos, ensaios piloto e fases experimentais, etc. Na primeira ocasião em que o mesmo foi necessário, logo se ficou a saber que tudo não passava de propaganda e distribuição de dinheiro pelas crisálidas), etc. Tudo projectos que se criam no papel, para os quais se fazem concursos e se litiga em tribunal. E quando tudo parecia resolvido, abandona-se o projecto com indemnização de todos os intervenientes – nova ponte sobre o Douro para travessia do metro, porque um novo projecto, um de mérito superlativo surgiu entretanto!

Estas “minas”, a que me refiro como de “ganso dos ovos de ouro”, foram descritas sob como uma parábola pelos Irmãos Grimm (Jacob e Wilhelm) e que a recuperaram da antiguidade clássica (Esopo). Este “conceito económico” contado sob a subtil fórmula de uma parábola, diz-nos que quando um negócio funciona com bons proventos para os seus intervenientes, qualquer tentativa num dado momento de maximizar os rendimentos arrisca-se a inutilizar o negócio num futuro mais ou menos imediato. O novo aeroporto de Lisboa é um bom exemplo de um “negócio” que respeita esta teoria do irmãos Grimm. Essa obra apontada como imprescindível há mais de 50 anos e que não tendo sido vital até aos dias de hoje continua apontada como indispensável. Mas a sua indispensabilidade não parece ter saído do papel. E isto tem a óbvia vantagem de não necessitar de financiamento para a sua construção. Bastam os estudos para fazer circular dinheiro, propaganda e expectativas. E claro está que fazer a obra seria como matar o “ganso dos ovos”. Enquanto não se fizer o aeroporto pode-se sempre ir fazendo estudos, numa atitude de “buena fides”, e quantos mais os locais a estudar, maior é a confusão e mais abundantes são as rendas para as crisálidas entretanto surgidas. E claro, se um aeroporto for projetado para a soleira da sua porta, só o caro leitor é que vai ficar decepcionado.

…. Votem em mim que vos prometo uma ponte. Mas alguém na assistência diz: Não temos nenhum rio cá na terra. Ao que de imediato respondi: faça-se a ponte que o rio logo aparece! (história alentejana).

Termino com uma citação anónima de 1840 e que me parece muito actual: “… há verdadeiros bandos que sob o falso título de partidos políticos mais não pretendem do que assaltar os dinheiros públicos ….”.

Cuide-se, caro leitor!