No passado fim-de-semana, Mariana Mortágua presenteou-nos com mais um momento de rara beleza. “O racismo atual tem uma história e essa história é a escravatura. E Portugal foi um dos grandes agentes mundiais na criação, não só do tráfico, como de todas as estruturas sociais que permitiram justificar essa escravatura e o colonialismo com a desumanização das pessoas. E a desumanização é a ideia de raças superiores e raças inferiores. É a ideia do racismo enquanto uma estrutura de desigualdade. E esse é o nosso passado”, disse a coordenadora do BE.

Estas declarações são um admirável exercício de revisionismo histórico selectivo – algo que é apanágio de comunistas. Vamos aplaudir o esforço, mas é preciso lembrar-lhe que a prática de subjugação humana é muito mais antiga e global do que o colonialismo português.

Antes de nos perdermos nas profundezas da culpa coletiva nacional que o BE tanto aprecia, convém lembrar que a escravatura existe desde tempos imemoriais. Civilizações como a Suméria e o Egito praticavam a escravatura há mais de cinco mil anos. Claro, não eram portugueses, mas quem se importa com esses detalhes quando se está a reescrever a história? Na Mesopotâmia, os escravos eram frequentemente prisioneiros de guerra ou indivíduos endividados. No Egito, a construção das pirâmides foi realizada em grande parte por escravos. Mas vamos ignorar esses factos menores para não distrair da narrativa principal: a culpa é dos portugueses contemporâneos.

Na Grécia antiga, os escravos desempenhavam uma miríade de funções, desde trabalhadores agrícolas até educadores, ou seja, do trabalho braçal ao intelectual. Aristóteles, provavelmente influenciado pelos vários portugueses que viviam em Atenas no século IV a.C., justificava a escravatura como boa para aqueles que tinham nascido na condição natural de escravos. No Império Romano, quase toda a economia dependia do trabalho escravo, independentemente da cor da sua pele. As  guerras eram uma fonte constante de mão-de-obra gratuita, utilizada em tudo, desde minas de prata até tarefas domésticas. Em todos estes casos o racismo não era a principal força-motriz do fenómeno esclavagista. Mas, claro, nada disso tem relevância quando Portugal e o Ocidente são os grandes vilões da história.

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A escravatura não era, por isso, exclusiva do mundo ocidental. Em África, já existia escravatura. Tribos guerreavam entre si e capturavam prisioneiros para os escravizarem. Após a chegada dos europeus, as tribos vitoriosas vendiam estes prisioneiros como escravos. No império Songai (hoje território de múltiplos países como Senegal, Mauritânia, Mali, Níger, entre outros) a escravatura era fundamental para a agricultura e para a construção. Na China, utilizavam-se escravos nas construções e na lide doméstica. No subcontinente indiano, o sistema de castas perpetuava formas de servidão. A própria palavra “escravo” tem como origem “eslavo”, povo europeu que foi escravizado por muçulmanos no século IX e que foi subjugado ao ponto de dar origem à palavra que passados doze séculos ainda usamos. Mas vamos varrer tudo isso para debaixo do tapete, porque, segundo Mortágua, a escravatura e racismo tiveram origem com Portugal.

Aqui chegados, das duas, uma: ou Mortágua ignora a História e, nesse caso, sugiro que se informe, ou então conhece-a, mas regurgita o zeitgeist vigente para obtenção de ganhos políticos pela extrema-esquerda: a ideia de que o Ocidente criou a escravatura e que, por isso, os ocidentais de hoje, e portugueses neste caso concreto, devem penitenciar-se pelos atos dos seus antepassados. O problema é que a realidade é um pouco mais complexa do que isso e é-o na seguinte duplicidade:

  1. Opressor ou oprimido? Há uma rábula que exemplifica esta questão de forma clara: em 2019, López Obrador, Presidente do México, enviou uma carta ao Rei de Espanha exigindo um pedido de desculpas pelos crimes cometidos pelos espanhóis durante a colonização do México. Ora, tendo em conta os apelidos “López Obrador”, Vargas Llosa respondeu ironicamente que o Presidente mexicano deveria ter enviado a carta a si mesmo, porque foram os seus antepassados os causadores dos crimes que ele atribuía a Espanha. Neste jogo de atribuição de culpas, fica a questão: imaginemos alguém descendente de escravistas e escravos. Essa pessoa é historicamente opressora ou oprimida?
  2. A falta de agência. Os portugueses de hoje não têm culpa dos erros dos seus antepassados. A culpa não se herda através dos genes. Na Coreia do Norte punem-se os familiares dos “criminosos”. É esse modelo que queremos decalcar? Ninguém que nasça em Portugal escolhe ser português. Com que legitimidade há de se reivindicar aos portugueses, como no caso das reparações históricas, o pagamento por erros dos seus antepassados? Como liberal, sinto o maior desprezo por atribuições coletivas de culpa, sejam as que servem aos propósitos da extrema-direita, sejam as que convêm à estratégia divisiva da extrema-esquerda.

Apesar de a escravatura ter ocorrido em múltiplas geografias e momentos históricos, a primeira civilização que desenvolveu repúdio moral quanto a essa conduta foi aquela onde nos inserimos: a civilização ocidental. Sob o primado do humanismo e do valor intrínseco do indivíduo independentemente da sua origem, tez ou religião, o conceito de escravatura foi moralmente questionado. Nos EUA, travou-se uma guerra civil para pôr termo a este flagelo. Curiosamente, é esta a civilização e é este o conjunto de ideias que o BE vê como a origem de todos os males do mundo.

É inegável que o tráfico transatlântico de escravos, em que Portugal teve um papel, existiu, mas não podemos ignorar o facto de que a escravatura não foi originalmente justificada pela cor de pele. Mortágua pretende misturar a escravatura e o racismo, importando diretamente dos manuais neomarxistas as formas de luta modernas. A luta de classes não funcionou, logo o BE precisa de reinventar as suas causas para justificar a sua existência. Substitui-se a dicotomia “burguês-proletário” por “tez clara-todas as outras tezes”. Mais uma ironia: importam da nação que mais abominam, os EUA, aquilo que não funcionou e que só criou conflitos sociais: a agenda woke. E suprema das ironias: aqueles que pedem constantemente ao ocidente para fazer um ato de contrição pelo seu passado são frequentemente os mesmos que nunca fizeram o mea culpa pelos milhões de mortos causados pela sua ideologia no século XX. Na política, a hipocrisia não é só uma arte; é, afinal, uma arma.