Este ano o Parlamento trouxe o tema da saúde mental nos jovens para discussão entre os alunos do ensino básico e secundário. Como deputado desloquei-me a escolas no meu círculo eleitoral, no Porto, para falar sobre estratégias de abordagem do tema e da necessidade de discutirmos soluções para esse drama. Mas quando o fazia julgo que ia com um sentido de missão acrescido porque eu próprio tinha tido uma experiência nesse campo. A história remonta ao ano de 2016. Uma das coisas que sempre desejei na vida foi dar aulas no ensino superior e, nesse ano, depois de concorrer a uma vaga para o efeito numa Universidade, consegui ser selecionado para dar aulas práticas de Direito. Na altura trabalhava também num Regulador, o dito emprego “regular”, já as aulas eram um part-time.

No início estava empolgado. A minha entrega foi total, apesar de ir sem rede. Cada professor estava por si – não pedia mais, também. Tínhamos um programa, a bibliografia e os casos práticos a resolver. E o que fiz foi fazer o meu papel como gente grande, i.e., com responsabilidade. Fazer-me à vida.

A conciliação do emprego regular e do part-time exigiam de mim toda a energia que poderia entregar e horas acrescidas de trabalho. Aí se incluíam os fins-de-semana e todas as horas livres que poderia ter. Não vi isso como um entrave porque já no passado tinha trabalhado e estudado ao mesmo tempo, tendo alcançado resultados acima da média. Era repetir… era só repetir, foi o que pensei!

O início foi fácil, já que estava tão entusiasmado. Fazia uma coisa que gostava, ainda que com os receios de quem o faz pela primeira vez. Com o receio de frustrar as expectativas de quem me ouvia e queria aprender e por isso a exigência que depositava na preparação de raiz e no estudo era muito elevada.

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No entanto, nem tudo está sob o nosso controlo e o corpo e a mente aguentam até certo ponto. Essa era a parte que ainda não tinha experimentado, a sensação de limite.

Não consigo dizer quando esse limite começou a sobressair, mas ao fim de algum tempo aquilo que fazia por gosto começou a tornar-se num sacrifício. Não era só preparar as aulas e estudar para estar apto a ensinar, mas era fazê-lo dentro de prazos curtos, numa corrida contra o tempo. Se tinha uma aula na terça, tantas vezes sentia que no domingo anterior eu não estava ainda com o domínio sobre a matéria que precisava. Estava muito rente. Queria ter uma ou mais semanas de avanço e não conseguia. O meu dia tinha só 24 horas e as horas que dormia, mesmo sendo reduzidas, não podiam diminuir mais.

A certa altura deixei de ter tempo para tratar das minhas coisas, para cozinhar, para tratar da minha roupa, enfim, coisas normais. Era trabalhar, estudar, preparar e lecionar.

As minhas semanas oscilavam entre momentos de stress e angústia, quando preparava o que ia ensinar, com momentos de euforia, quando depois de cada aula tudo tinha corrido bem. A lógica passou a ser sobreviver a cada semana, esperando que tudo terminasse depressa. As semanas transformaram-se em meses.

No entretanto, o cansaço foi-se instalando. Ajudou-me imenso nesta fase a minha mãe. E, também, uma colega de trabalho que experimentava o mesmo stress da preparação das aulas, pelo que começamos a apoiar-nos mutuamente. Agradeço-lhe imenso. Foi mesmo muito importante e nunca esquecerei.

À conta de tudo isto o corpo foi dando de si. O cérebro já não absorvia com muita facilidade os temas que estudava. Às vezes lia e lia e não conseguia memorizar nada. O apetite também começou a ir-se. E nesse ano apanhei uma coisa chamada alopécia areata, que ainda hoje mantenho. A barba de quando em vez deixa de crescer. É uma doença autoimune. Surgiu nesse ano e mantém-se até hoje, basta haver um gatilho. O interesse também caiu a pique. Nada me motivava já.

O diagnóstico veio pelo médico. Disse-me que estava com um burnout.

No final desse ano letivo, tamanho era o stress e o cansaço, que jurei a mim mesmo que nunca mais daria aulas na vida. Era uma decisão e estava tomada.

Quando esse período terminou fiquei contente, mas não o suficiente porque estava exausto. Foi aí que um amigo me desafiou para ir fazer o Caminho de Santiago. Adorei a ideia porque não tinha outra forma de sair daquele estado em que estava. Férias aqui ou ali não chegavam. A exaustão era interior.

Começamos em Oviedo, em Espanha. Ao contrário de mim, ele já tinha experiência. Fomos juntos, embora ao fim de três ou quatro dias ele teve de regressar porque um familiar estava doente. Perguntou-me se eu queria continuar e eu disse que sim. Continuei sozinho e foi a melhor coisa que fiz.

Foram 343 quilómetros percorridos em doze dias a caminhar. Andei no meio das montanhas, bem lá no alto, onde não havia um café ou uma casa e apenas um aviso a dizer “cuidado, ursos”. Ouvi a música do “Party Animal” enquanto olhava o horizonte e a natureza. Vi cavalos selvagens, vacas a pastar e torres eólicas. Quase que toquei as nuvens no alto. Almocei com desconhecidos, abracei demoradamente pessoas ao fim de 30 minutos de as conhecer e ouvi, ouvi muitas histórias. Vi pessoas a fazer o caminho para lá e o caminho para cá. E nas pequenas vilas onde os cães andam à solta a latir aos estranhos esperei por outros caminhantes para não os enfrentar sozinho. Sorri muito, apesar dos esticões nas pernas, das bolhas ou do cansaço físico. Comi que nem um alarve a cada etapa. Caminhei 20 quilómetros com uma torção no pé e com a ajuda dos meus bastões. Dormi em albergues, lavei a minha roupa e senti o peso da mochila. Tanto que passei a usar o Taxi Camino, um serviço que me levava a mochila até ao albergue seguinte. No fim, quando cheguei a Santiago e ao assistir à missa, chorei.

O cansaço interior passou para cansaço físico. O caminho purgou o que estava lá dentro e não devia estar. E no fim o cansaço físico passou, porque passa sempre. É mais fácil descansar o corpo do que descansar a alma.

Por isso digo sempre que o Caminho me salvou. Cheguei recuperado e rejuvenescido.

Aprendi uma lição que guardo até hoje. Além dos limites que temos, nunca sofrer por antecipação. Um percurso de 343 quilómetros só se faz por etapas, uma em cada dia. E não vale a pena pensar nas que faltam se ainda temos de percorrer a de hoje.

As aulas, voltei a lecionar no ano seguinte e mantenho até aos nossos dias. É algo que gosto muito de fazer.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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