De repente apagaram-se as luzes das autárquicas. De um dia para o outro não ouviremos mais falar de habitação, mobilidade, segurança, educação, higiene urbana ou aeroportos. Vários destes temas estarão nos próximos quatro anos na gaveta da agenda mediática, à espera de que o beijo de princesa das próximas eleições locais os devolva à vida. O que é pena.

De entre os vários cabeçalhos das últimas semanas há um que não pode (ou, pelo menos, não deve) esperar mais quatro anos para ser novamente assunto: o papel dos automóveis nos centros das cidades.

Uma conclusão interessante do debate autárquico nacional é o relativo consenso quanto à necessidade de subtrair os carros às paisagens urbanas centrais. Em que extensão, com que medidas e, sobretudo, com que alternativas de mobilidade é que já é fonte de tremenda acidez política que não cumpre analisar aqui.

Relevante, sim, é a circunstância de estarmos coletivamente a caminhar para a consciência de que os automóveis não devem ser parte integrante dos centros urbanos portugueses. O que nos alinha com as mais inovadoras estratégias internacionais para as cidades do futuro. E ainda bem.

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A última década tem sido transformadora e são vários os exemplos desta tendência. Cidades como Nova Iorque, Londres, Madrid, Milão ou Dublin já deram passos neste sentido.

O caso de Barcelona e os seus superblocks será, porventura, um dos mais paradigmáticos. O conceito é simples: a partir de um conjunto de nove quarteirões permite-se a circulação automóvel no seu perímetro, reservando todo o interior do super quarteirão à circulação pedestre ou de veículos locais a uma velocidade extremamente reduzida (10 km/h).

A respeito de velocidade, há uma tendência de diminuir a velocidade para 30 km em Espanha, e, na cidade de Pontevedra, um bom exemplo de priorização das pessoas aos automóveis que dá resultados: zero mortes.

Quem historicamente se costuma posicionar na oposição a estas medidas é o tecido comercial local, cá como lá fora. Nas várias geografias onde os modelos pedonais têm sido testados, o primeiro instinto dos comerciantes é assumir uma proporcionalidade direta entre o tráfego automóvel e o volume de vendas, temendo perder negócio.

Ora, precisamente, um estudo de maio deste ano, realizado em duas ruas centrais de Berlim pelo Instituto de Estudos Avançados de Sustentabilidade de Potsdam (IASS), envolvendo 145 lojas e mais de 2 mil clientes, concluiu que os retalhistas tendem a sobrestimar a utilização do automóvel e a subestimar clientes que acedem ao comércio através de outros meios de transporte.

O resultado foi obtido através da confirmação de algumas premissas, como o facto dos clientes viverem muito mais próximos das ruas comerciais do que aquilo que os comerciantes tendem a percecionar – constatando que a maioria do tráfego não chegou até às ruas comerciais com o automóvel – e que os consumidores sem automóvel representam uma larguíssima maioria do volume de vendas dos comerciantes de rua (91%), ainda que sejam os clientes com automóveis que fazem as compras de mais valor.

Parece confuso? Um pouco.

A pandemia proporcionou case studies interessantes a partir da pedonalização forçada de algumas ruas. A plataforma de avaliações Yelp olhou, por exemplo, para restaurantes em Boston, São Francisco e Chicago, todos localizados em ruas fechadas ao trânsito e constatou um aumento de interesse e utilização pelos membros da plataforma nos espaços inseridos nas ruas pedonalizadas.

Pese embora haja importantes desafios logísticos a contemplar neste planeamento (e que estão longe de ser uma questão menor), é inegável que há na pedonalização das cidades um tremendo poder transformador e de geração de tráfego comercial, por seu turno propulsor de dinâmica económica.

Ainda assim, a desconfiança do tecido comercial é quase inevitável. Quando, em 1962, Copenhaga – meca mundial do uso citadino da bicicleta – começou a sua pedonalização, a reação dos comerciantes foi agressiva: “Ruas pedonais nunca vão funcionar na Escandinávia”, diziam. “Sem carros não há clientes e sem clientes não há negócios”, foram alguns dos comentários registados à data. O resto… é história.

Portugal tem nos seus centros históricos uma pura lição de arqueologia económica sobre o que não fazer com o comércio local. O país desespera há décadas por uma solução que resolva o paradoxo de ser o país da Europa com mais condições para ter um comércio de rua vivo e de ser justamente aquele que mais lhe vira as costas. Não foram os automóveis que causaram esta crise, mas pode ser a sua subtração das cidades que venha resolvê-la.

Centros históricos verdes, sem a ensurdecedora poluição sonora automóvel (daqui a poucos anos ficaremos chocados com a constatação do quão naturalmente tolerávamos o ruído urbano por estes dias), sem acidentes nem sinistralidade rodoviária, com dinâmica cultural e artística, com segurança e, no nosso caso, com sol, serão o futuro do retalho físico.

Verdadeiros centros de lazer, para as pessoas, abrindo espaço ao empreendedorismo comercial e apresentando ao mundo o que de bom se faz por todo o país. A pedonalização das cidades pode ser o princípio da solução para uma das maiores pedras no sapato da economia portuguesa e seria uma pena que o tecido comercial não optasse por ficar do lado certo da história.

Tiago Quaresma tem 27 anos e é licenciado em Direito. Profissionalmente, é administrador do Grupo Valor do Tempo e Vice-Presidente da AHRESP. É membro dos Global Shapers.

O Observador associa-se ao Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial, para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa.  O artigo representa a opinião pessoal do autor, enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.