O Presidente do Governo de Espanha, Pedro Sánchez Pérez-Castejón, lida neste momento com duas acusações sérias: por um lado, uma rede de corrupção multimilionária que envolve contratos públicos de fornecimentos ao Estado (em especial sanitários durante a pandemia), ajudas públicas e resgates de empresas decididos a dedo. Existem acusações, provas sólidas e até detenções. As ramificações parecem ter origem em José-Luís Ábalos, o homem com que Sánchez contou até 2021 para controlar o aparelho do partido e que premiou com um cargo ministerial, o número dois do Sanchismo. Por outro, uma investigação à sua esposa que parte de indícios de tráfico de influências na gestão de um mestrado para o qual, diga-se de passagem, esta não possuía outro currículo relevante para além de ser mulher de quem é. Também neste caso os indícios apontam mais além de uma simples conduta eticamente reprovável, à existência de crimes como a apropriação indevida de um software propriedade da Universidade Complutense, como se de próprio se tratasse, e ajudas públicas concedidas a empresas que patrocinam o curso.

Para compor o ramalhete, existem investigações ao irmão do Presidente do Governo por prevaricação, malversação, tráfico de influências e delitos contra a administração fiscal e a administração pública. Como o irmão justifica parte do enriquecimento com uma doação do pai, este também está a ser investigado pela autoridade tributária.

Os seus defensores dizem que este é um movimento em pinça que tem como único objectivo manchar a imagem do Presidente de Governo com ataques simultâneos em várias frentes, e os seus detractores que, pelo contrário, as pinças são tentáculos com um mesmo ponto de origem – o Palácio de Moncloa.

Uma coisa é certa, verdadeiras ou não, as acusações a Sanchéz, ou ao seu círculo, são mais do que suficientes para que qualquer político de uma democracia Ocidental se demitisse, para não se desgastar, desgastar o próprio Governo e o Partido. Aliás, deveriam ser suficientes para que Sanchéz – que chegou à presidência do Governo após uma moção de censura feita em nome da transparência e contra aquilo que identificou como a corrupção do Partido Popular – se demitisse, se as palavras tivessem algum significado para ele. Mas para Sánchez só o poder tem significado e o Governo e Partido são dele, feitos à sua imagem e semelhança. Para Sánchez, demitir-se do poder não é uma opção. No final da sua primeira passagem pelo cargo de Secretário-Geral do Partido Socialista teve que ser ameaçado com uma intervenção policial para desocupar o seu escritório na sede do partido na Calle Ferraz. Precisará de um incentivo idêntico para abandonar o cargo que agora ostenta. Só o som de sirenes nos jardins da Moncloa e luzes azuis intermitentes a reflectir nos tectos do Palácio o farão abandonar o cargo.

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Sánchez é o que se poderia considerar um arrivista dentro do PSOE.

Não fez o cursus honorum da política partidária moderna que começa nas eleições dos jotas no associativismo estudantil e nas listas que vão ganhando e controlando as concelhias partidárias e aprendendo o caciquismo desde baixo.

Também não é herdeiro de nenhuma ilustre família socialista, um desses jovens privilegiados a quem o nepotismo abre as portas dos partidos desde o topo. O seu pai teve cargos de responsabilidade em governos socialistas, nomeadamente nos ministérios da Cultura e da Agricultura, mas nunca foi um homem do aparelho. Mas era rico, ou pelo menos suficientemente rico e influente para poder colocar o jovem Pedro, primeiro num colégio religioso privado, depois num liceu público, mas elitista, do Bairro de Salamanca e mais tarde concluir uma licenciatura em Administração de Empresas num Centro Universitário com pouco renome, mas muita exclusividade.

Concluídos os estudos, conta a lenda que Sánchez foi para Nova Iorque trabalhar numa consultora de prestígio global, cujo nome, como no caso da terra natal de D. Quixote, ninguém parece querer recordar. Muito provavelmente o currículo de Sánchez não começou a ser falsificado com a Tese de Doutoramento medíocre, plagiada de relatórios não-académicos elaborados pelo Ministério da Indústria durante o consulado do Ministro Sebastián e defendida à porta fechada entre amigos, mas com uma carreira profissional inexistente em Nova Iorque.

A que se dedicou Sánchez, se a algo, profissionalmente em Nova Iorque pouca gente saberá, o que se sabe é que o pai contactou um velho amigo dos tempos do Filipismo, Carlos Westendorp y Cabeza, que por essa mesma altura foi nomeado embaixador representante de Espanha nas Nações Unidas a quem pediu que convidasse o rapaz para jantar de vez em quando na sua casa, não fosse o jovem Pedro andar mal alimentado. Westendorp assentiu com gosto e Sanchéz passou a ser visita da casa com alguma frequência. O jovem caiu bem ao embaixador e foi assim que, passado um ano, este o recomendou ao Grupo Socialista do Parlamento Europeu que, por essa altura, andava necessitado de alguém que ajudasse com as questões orçamentais. O responsável pela sua contratação, o eurodeputado Enrique Barón, ter-lhe-à dito “se estiveste em Wall Street [não era uma consultora?] que é o santuário do capitalismo, vens bem preparado para estar no Grupo Socialista porque não viste só a teoria, mas também a prática”. Para quem se lembra, nos anos 90, para o bem e para o mal ninguém se preocupava muito em verificar referências.

É duvidoso, no entanto, que Sánchez tenha visto muita Economia, teórica ou prática, em Nova Iorque ou mesmo desde então. A sua tese de doutoramento, além de pouco original, é banal, e o assunto costuma estar conspicuamente ausente dos seus discursos. Nos debates televisivos contra Mariano Rajoy e Alberto Nuñez Feijoo, nenhum dos dois versados na disciplina, nunca foi capaz de explorar essa debilidade dos seus adversários. A Economia foi sempre um tema em que os intervenientes tinham pressa em passar à frente. Do que ninguém duvida é da facilidade de Sánchez para agradar e se fazer notar nos círculos do poder.

Os seus mentores, Westendorp na ONU e Bárbara Dührkop na UE falam bem dele e, reconhecendo-lhe muita competência política, não deixam de manifestar alguma surpresa ao ver onde o seu discípulo chegou. Se já ambicionava chegar tão longe, teve o mérito de saber esconder essa ambição quando ainda não era ninguém, e assim poder apanhar os seus adversários dentro do partido de surpresa.

E apanhou-os de surpresa. O PSOE foi, desde os tempos de Felipe González practicamente uma coutada da Federação da Andaluzia. o PSOE-A é a Federação com mais militantes e votos na eleição do Secretário-Geral. Mas em 2014, com o maior caso de corrupção conhecido em Espanha a atingir em cheio os dois últimos líderes do Partido e presidentes da Junta na região, Manuel Chávez e Pepe Griñan, os socialistas andaluzes não estavam em situação de impor um candidato. Além disso, pela primeira vez, o Congresso foi precedido de Primárias que, não sendo vinculantes no resultado, acabaram por ser respeitadas pelos delegados.

Foi assim que Sanchéz, um deputado da parte baixa da lista, que nas duas legislaturas anteriores só ascendeu ao Congresso por renúncia de deputados mais ilustres, convidados para outros cargos na Administração, conseguiu habilmente postular-se como candidato e depois vencer a eleição para Secretário-Geral do Partido. Salvo erro, a primeira vez que alguém que não fazia parte da Comissão Executiva ou do Comité Geral ascendeu ao cargo. Em parte, também porque foi visto como uma escolha de transição, alguém para queimar enquanto o Partido recuperava da demissão de Zapatero, provocada pela crise económica e os maus resultados de Pérez Rubalcaba. Estávamos em Julho de 2014.

Os resultados eleitorais em 2015 e 2016 foram, como era de esperar, os piores da história do Partido Socialista Obreiro Espanhol desde a Constituição de 1976, com 90 e 85 deputados respectivamente. Em vez de aceitar a vitória do PP e se abster para permitir que os populares formassem governo, Pedro Sánchez negociou com o partido Ciudadanos uma aliança para tentar formar um governo. Uma aliança que dava a Sánchez a única coisa que ele pretendia, um número de deputados suficientes para ir ao Rei pedir autorização para formar governo no lugar de Mariano Rajoy. Esse governo ultraminoritário foi amplamente rejeitado pelo resto de forças políticas, mas com isso Sánchez impediu o PP de formar governo, obrigando a que se convocassem novas eleições, as de 2016, de onde o PSOE saiu ainda mais derrotado. Ainda assim, Sánchez recusou-se uma vez mais a permitir um governo do PP, pedindo pela primeira vez a coligação de todas as forças “progressistas” e “independentistas” para impedi-lo. Foi nesse momento que os socialistas, que estavam preparados para aceitar um governo do PP em troca do governo nalgumas câmaras municipais e regiões, perceberam que tinham criado um monstro que os ia devorar.

Para evitar o banquete, metade da Comissão Executiva demitiu-se um mês depois, para dar lugar a uma Comissão de Gestão que exigisse a demissão de Sánchez. Sánchez que, já percebemos, nunca se demite, entrincheirou-se no seu escritório na sede do PSOE e só aceitou o veredicto quando os membros da Comissão ameaçaram demiti-lo e chamar a polícia para o desalojar. Pedro Sanchéz, o deputado socialista de base que conquistou os seus correligionários com um discurso moderado, com uma intransigência de linhas vermelhas contra os partidos mais à esquerda, com um curriculum internacional na ONU e na UE e, supostamente, um conhecimento teórico e prático do capitalismo de Wall Street, converteu-se, de um dia para o outro, no líder de esquerda disposto a impedir a qualquer preço que a direita governasse. Converteu-se no escravo do poder que defende uma coisa e o seu contrário se isso lhe permite governar.

Mas o mundo também mudou. O bipartidismo do Centrão, com socialistas ou social-democratas à esquerda e democratas-cristãos ou populares à direita, faliu com a crise de 2008 e, no seu lugar, apareceu uma polarização que exige cada vez mais coisas que o Estado do Bem-Estar não pode dar, mesmo se os governantes não o admitem, e é cada vez mais intransigente com a possibilidade de a outra metade da população governar. Com as eleições primárias firmemente estabelecidas na eleição do candidato, Pedro Sanchéz, o homem que impediu a qualquer custo a formação de um governo de direita era o favorito dos militantes de base. A estrutura do partido atirou tudo o que tinha contra Pedro Sánchez, e escolheu como candidata a Susana Díaz, Presidente da Junta da Andaluzia e Secretária-Geral do Partido na região mais poderosa dos socialistas. A luta foi renhida, mas Sánchez ganhou. E desde esse dia começou a desmontar o PSOE e a erguer no seu lugar um partido à sua imagem, recompensando os seus apoiantes com os lugares de poder dentro do mesmo. Oito anos mais tarde devem restar apenas meia-dúzia de barões territoriais históricos no partido.

A partir daí a ascensão de Pedro Sánchez é mais conhecida. Moção de censura em 2018, juntando todos os partidos da oposição com a promessa de eleições que, obviamente, atrasou o mais que pôde para não perder o poder. Umas primeiras eleições gerais, em Abril de 2019, onde não consegue a maioria nem um acordo para governar em minoria, e umas segundas eleições ainda nesse mesmo ano em Novembro.

Ao ver que o PP melhorava o seu resultado substancialmente e evitando uma sangria de lugares no Parlamento graças ao método de Hondt que lhe permitiu perder apenas 3 deputados apesar de ter tido menos 11% de votos, aceitou formar governo com a Esquerda radical dando entrada ao Podemos no Governo e com os independentistas catalães, a quem prometeu um processo que poderá levar à independência num futuro da região, no completar o número de votos necessários para as leis passarem.

Nas eleições de 2023 fez praticamente o mesmo, agora sem Podemos no governo (que se dissolveu numa luta fratricida entre os vários movimentos da esquerda radical) mas partindo da posição de segundo partido mais votado, o que debilita ainda mais o seu governo, que fica à mercê de muitas exigências dos seus parceiros que, ao velho PSOE (e a muitos dos seus votantes fora da Catalunha e do País Basco) lhes pareceriam inaceitáveis.

Mas esse partido já não existe, agora é o Partido de Pedro Sánchez, um partido onde o número dois da hierarquia invocou imunidade parlamentar e está à espera de que o Supremo Tribunal levante essa imunidade para o julgar por pertencer a uma rede de corrupção, enquanto o número um se acolhe ao direito a não declarar contra a sua mulher também ela investigada. Mas para Sánchez está tudo bem sempre que ele possa continuar a governar. Para desviar a atenção, voltou a ser o paladino da esquerda, encabeçando a luta pelo direito à habitação dos mais desfavorecidos como se ele não tivesse governado nos últimos 6 anos e meio. Como diria Groucho Marx, estes são os meus princípios, mas, se não gostam, tenho outros.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não refletem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.