Não é por sermos “malucos” que nos matamos. Muito menos por sermos “fracos” ou “demasiado sensíveis”. Também não é porque “já havia historial na família” nem porque “já não havia solução”. Matamo-nos porque não sabemos fazer melhor. E sempre que o fazemos — demasiadas vezes —, fazemo-lo contra algo; a romper com algo; a pedir algo.
O suicídio é um ato iminentemente político. Não vem do vácuo nem é desligado do contexto socioeconómica de quem o faz. Um suicida podia não sê-lo se tivesse acesso a saúde mental gratuita, a um salário mais digno ou a um teto para dormir. Podia não sê-lo se não se sentisse derrotado e inútil.
E estas ausências, materiais e de autoestima, também têm contexto: são, em parte, consequências de um modelo económico que há muito se tornou invisível. O capitalismo é o ar que se respira, o cuspe que se cospe, a língua que se fala, sendo hoje impossível imaginar o mundo sem ele. É um modelo que fomenta uma competição facínora e nos convence de que o “topo” está ao alcance de todos. Mas e os que lá não chegam — e os “derrotados”?
Esses atiram-se: ora de janelas, ora de pontes, ora com nós em cordas. Se ao menos não esperassem meses por consultas, se ao menos não tivessem de optar entre comprar laranjas ou ir-se não-suicidar ao privado, se ao menos não fossem vistos como “derrotados”.
A pós-modernidade pariu-nos: deprimidos, ansiosos e sem esperança. O cocktail situacional leva a isso: abandonámos Deus (sendo ao Homem a espiritualidade tão necessária como pão), desmantelamos as comunidades (descer a rua e ouvir “Como está?” é uma instituição milenar) e vivemos digitalmente (comparamo-nos demasiado com pares, ignoramos flores e pássaros).
A depressão será a grande pandemia do século XXI — e cabe por isso aos Estados encontrar formas de a neutralizar, promovendo políticas públicas que procurem que eu, os meus amigos e os demais cidadãos não nos matemos. Parece que esta semana o Governo português agiu nesse sentido, anunciado cem mil cheques-psicólogos para universitários. Muito bem — mas é preciso mais.
Mais psicólogos e psiquiatras; melhores salários; que as medidas também cheguem aos velhotes alentejanos; que o Estado crie infraestruturas dedicadas à saúde mental e estimule a investigação sobre o tema; que subsidie tratamentos no privado; que ponha um psicólogo em cada esquina. Que crie hospitais de campanha, se for preciso — mas que faça: ou à sombra de uma azinheira aparecerá outro alentejano ao dependuro.
Quanto mais o Estado investir na saúde mental, menos suicidas: o jovem adolescente aprenderá que a meditação pode mesmo acalmá-lo; o velhote alentejano memorizará a regra dos sete dias (quando nos queremos matar devemos esperar sete dias: passado esse tempo quase sempre a angústia será menor) e a mãe de família valorizará finalmente a desregulação de hormonas. E assim se pouparam três vidas — que, se se tivessem matado, ter-se-iam arrependido.
Segundo dados da OCDE, em 2019 cerca de 22% dos portugueses eram afetados por “transtornos mentais”. Ou seja, mais de um quinto dos cidadãos anda diariamente com o suicídio no bolso. Embora Portugal seja um dos países na Europa com maior prevalência deste tipo de transtornos, os seus potenciais suicidas são deixados a marinar em eternas listas de espera. E, no privado, que serve com decência os que dele podem usufruir, as consultas são cada vez menos acessíveis.
A atual pandemia mental não deve ser entendida como algo que ataca avulsamente o Zé ou a Maria. Pelo contrário, deve ser situada num contexto económico e filosófico: vivemos de uma certa forma, numa certa época — e este paradigma, em que os intervenientes se beijam e entrelaçam, está claramente a fazer-nos sofrer mais do que no passado.
Por esta luta deu a vida Mark Fisher, filósofo da internet, amigo nas horas duras. Nos seus escritos tentou salvar os outros e a si. Não conseguiu: enforcou-se a janeiro de 2017, pouco depois de o NHS lhe negar consultas psiquiátricas presenciais. Fisher não quis morrer em vão — nenhum suicida quer. São atos que inevitavelmente nos levam a olhar para dentro:
O que está mal — onde falhamos, porque falhamos?
Identificado o motivo, temos obrigação de tentar corrigi-lo: quer com políticas públicas, quer com políticas pessoais. Não o fazendo, seremos apenas o garante de que houve mais um suicídio em vão — e isso, com toda a violência que comporta, consegue ser ainda mais triste.