O meu pai não conhece pronomes possessivos.

O meu pai é de todos e não é de ninguém, tal como a sua mãe, de todos e sujeita a ninguém.

O meu pai é de ideias extremas, mas de presença pacata, veleja por esta vida dando a mão a todos e ao mesmo tempo, de alma livre, não cria rancores, não conhece pronomes…é de todos, não é de ninguém.

O meu pai vem de uma linhagem de irrequietos, de anticonvencionais, de agiotas, de indivíduos livres, um deles de cognome Pirata. Esta estranha forma de vida propagou-se no nosso genoma e o meu pai não foi exceção. Somos de todos, não somos de ninguém, somos do verbo ir, somos do verbo arregaçar as mangas e com as mãos construir, somos do verbo sentir, do verbo não deglutir conservadorismos ou certas regras.

O meu pai foi de todos, não foi de ninguém, foi um homem livre que à pergunta: de que clube de futebol é que é? respondia jocoso: Sou do clube naval. Só era de um clube e pouco mais acusava pertença… talvez à família Andrade e Sousa, que considerava ser uma das estruturas familiares das mais bonitas que a vida tinha para nos dar.

O meu pai foi de dois clubes e todo espaço que restou, deixou-o livre para ser de todos… num jeito comum de comunista sem o ser, num jeito social de socialista, sem o ser, num jeito do povo, populista sem o ser, doa a quem doer. E com esta fotografia mental da sua maneira de ser, não havia comum mortal que não o reconhecesse… fosse o velho, fosse o novo, fosse o rico, fosse o pobre, fosse o intelectual, fosse o simplório… o meu pai foi de todos… até da mais ingénua das criaturas, que o recordou, como dizia uma vez um dos seus sobrinhos netos: I know, it’s that guy with the beans…

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Assim foi o meu pai… um ente de uma fábula, um personagem de um livro de Gabriel Garcia Marques, um reflexo do ex-Presidente do Uruguai… assim foi o meu pai…um Pepe Mujica, um chefe de estado de vestes modestas, na sua residência presidencial que era enfim, uma casa mais gasta que o tempo, a trabalhar na lavoura enquanto o seu cão coxo, passava pela frente dos jornalistas… assim foi o meu pai… um homem sentado num banco anão, a descascar feijão, mas que nos confunde, porque está ao mesmo tempo a apreciar um movimento de Rachmaninov, enquanto pensa a quem servir na próxima refeição. As coisas materiais não o atormentavam… mas de novo nos confunde porque muito se atormentou com coisas materiais, como um veleiro quase afundado em Vila Real de Santo António… assim foi o meu pai… um crente da utopia, um personagem de um conto, um mestre da fantasia. Se fosse para uma ilha deserta, o que levaria? um fato de banho… uma mala tiracolo e um utensílio para a gastronomia.

Assim foi o meu pai… colérico com a forma de pegar nos talheres e de lavar a cozinha, mas tudo resto era de todos e para todos. Assim nos confundiu o meu pai… dono de uma catastrófica fisiologia, versus uma insustentável leveza de ser que o permitia, pedalar das Amoreiras a Alfragide só para trazer um repasto de 14kg, enquanto no seu corpo, marinava uma brutal anemia. Assim nos surpreendeu o meu pai… alguém disse que ele tratava a doença por tu… então se assim fora, quando contarmos esta estória, contamos era uma vez o Tó, corajoso, que tratava a doença por tu e que um dia, numa tarde solarenga com ela teve uma conversa amena, de tu cá tu lá, na qual chegaram os dois à conclusão de que era melhor assim, sem apelo nem agravo, com toda a calma e toda a temperança, sem alaridos, sem pruridos, vamos para o bloco e resolvemos esta questão.

O meu pai foi de todos e não foi de ninguém, confundiu-nos também, porque já quase que me esquecia, no meu papel de mãe, que ser pai é também não saber ser pai e sair de cena mais cedo do que se esperava, mais cedo do que precisava, porque a todos nós nos deu tanto e tudo o que de bom carregava.

Costuma dizer-se que os ‘melhores’ são os que vão primeiro… aqueles que nos guiam, aqueles que nos inspiram… ora… se não estou em erro… essa afirmação é nada mais do que a incómoda evidência de que somos então os menos bons…os que precisam de ficar e trabalhar mais… dizia o Duarte que Deus canaliza o seu amor através de pessoas como o meu pai… o meu pai foi de todos, confunde e surpreende, porque sem querer, obriga-nos, instiga-nos, motiva-nos a revivê-lo através dos seus atos, para que a sua memória fique viva durante gerações… e assim estamos a replicar, nada mais, nada menos, do que aquilo que de melhor a vida tem para nos oferecer.

Até já pai.

14 de março de 2021