Na manhã de quinta-feira, nas notícias sobre a morte de Henry Kissinger, o adjectivo mais usado pelos media era “controverso”. “Controverso” é o termo de transição geralmente usado quando morre alguém que tenha andado a pisar o risco ou que tenha francamente ousado transpor as linhas vermelhas traçadas pelos “fazedores de opinião”. É a última homenagem que costuma anteceder e preparar o empurrão do “controverso” para a Geena do “extremista” ou do “fascista”.
Não é preciso muito para se ser “controverso” à hora da morte, mas lendo um dos últimos textos de Henry Kissinger, um discurso pronunciado no World Economic Forum em 23 de Maio de 2022, percebe-se que o defunto dificilmente escaparia ao qualificativo, uma vez que, meses depois da invasão russa, viera reiterar o que já dissera em 2014: que a Ucrânia, para seu bem e para bem da Europa e da paz na Europa, devia ser um Estado neutral, tal como a Finlândia o tinha sido durante a Guerra Fria. George F. Kennan, outro “controverso” pensador e diplomata americano, artífice da estratégia ocidental na Guerra Fria, concordava como ele.
Kissinger pertenceu a uma espécie rara e impopular – foi um realista político num mundo em que, cada vez mais, os políticos, os comentadores e até os pensadores e os diplomatas falam ou são forçados a falar, calam ou são forçados a calar, de acordo com agendas ideológicas invariavelmente maniqueístas. Como tudo parece encaminhar-se para a simplificação interessada e imbecilizante, quem hoje se pronuncie sobre grandes guerras ou pequenos casos sem prestar homenagem ao “bem” oficial, sem separar a qualquer preço “bons” e “maus” e sem promover acaloradamente o triunfo do bem da moda sobre o mal do momento, torna-se imprestável. E quando, por alguma razão, o imprestável não pode ser ignorado ou imediatamente precipitado nos Infernos que crepitam para além das linhas vermelhas, arranja-se-lhe um lugar à entrada, no ciclo da “controvérsia”.
De Heinz a Henry
Henry Kissinger, nascido Heinz Alfred Kissinger a 27 de maio de 1923, protagonizou o que se pode chamar uma história de sucesso. Nasceu em Fürth, na Francónia, num ano decisivo para a República de Weimar. Stefan Zweig, na sua autobiografia, diz não ter vivido outro ano assim. Foi um ano terrível para a Alemanha, um ano de loucura e de muitos perigos, um ano de hiperinflacção e de separatismos que culminou, a 9 de Novembro, com o Bier Halle Putsch de Hitler e Ludendorf em Munique.
Fürth era uma pequena cidade perto de Nuremberga, onde o partido nacional-socialista fazia os seus grandes comícios – ao ar livre, à luz de archotes, numa reencenação dos Nibelungos que Richard Wagner, compositor adorado pelo Führer, inventara para a burguesia da reunificação bismarckiana. Henry Kissinger ainda não tinha seis meses quando Hitler tentou o golpe de força em Munique, golpe em que o futuro Führer foi ferido, julgado e mandado para a prisão de Spandau, onde escreveu o Mein Kampf.
Mas em Janeiro de 1933, Hindenburgo nomeou o líder do NSDAP Chanceler. Em poucos meses, os nacionais-socialistas tomaram o poder total e instauraram a Nova Ordem. Henry, ou Heinz, tinha dez anos quando a Nova Ordem chegou a Fürth, e os Kissinger, uma família de judeus alemães de classe média, sentiram na pele a sua aproximação. O pai, Louis, professor primário, foi saneado e os amigos e vizinhos dos Kissinger começaram a escassear. Na escola, Henry e o irmão Walter foram sendo afastados pelos colegas que entravam para a Hitlerjugend: deixavam de ser alemães e passavam a ser só judeus. A mãe, Paula, percebeu o que os esperava e tratou de pedir vistos para a América, para onde seguiram.
Era o ano de 1938. Os Kissinger fixaram-se em Washington Heights, um bairro de judeus ortodoxos, em Nova Iorque. Heinz passou a Henry e em 1943 foi mobilizado para a Europa. Desembarcou na Normandia em Junho de 1944. O irmão, Walter, dois anos mais novo, serviria no Pacífico.
E assim Henry voltava à pátria, de onde tinha sido obrigado a sair. E voltava como vencedor, num exército vitorioso de ocupação. É nesse tempo que encontra aquele que vai ser o seu mentor e que o vai encorajar a ir para Harvard: Fritz Kraemer.
O mentor
Kraemer era de Essen, a terra das fábricas Krupp; era também judeu (o pai morreria em Theresienstadt) mas de religião luterana, e doutorara-se em Ciência Política em Frankfurt e em Roma. Fora também para os Estados Unidos em 1939, naturalizara-se e servira no Exército americano. Fizera as batalhas das Ardenas, do Ruhr e da Renânia “com dois doutoramentos e um monóculo”. Kraemer – que tive a sorte de conhecer pessoalmente nos anos oitenta, em Washington – foi o mentor de Henry Kissinger.
Kissinger conheceu-o aos 19 anos em Camp Claiborne, na Louisiana: “He was thirty-six years of age; I nineteen; he had two Ph Degrees; I had two years of night college in accounting”, diria depois no elogio fúnebre do mestre:
“Kraemer moldou as minhas leituras e o meu pensamento, influenciou a minha escolha de faculdade, despertou o meu interesse pela Filosofia Política e pela História, inspirou as minhas teses de licenciatura e de pós-graduação e tornou-se parte integrante e indispensável da minha vida.”
Só estive uma vez com Kissinger, em Nova Iorque, já ele passara dos 90, mas conheci bem Kraemer, o mentor que se incompatibilizara com o discípulo mas que não dizia mal dele – embora não deixasse de sublinhar que a parelha Kissinger-Nixon não era exactamente o que parecia, já que nem sempre o conselheiro dominava o aconselhado: Nixon, dizia Kraemer, era muito mais autónomo e articulado do que os media o faziam. Também o ouvi muitas vezes criticar outros políticos de Washington, particularmente James (Jimmy) Baker, por pensar que era a economia que comandava e devia comandar a política ou que, na dicotomia maquiavélica do ouro e do ferro, era o ouro que mais pesava. Fritz Kraemer aí enrugava a cara, entalava melhor o monóculo no olho (ficando ainda mais parecido com o Eric von Stroheim de La Grande Illusion) e passava a exemplificar: “O Baker tem um punhado de dólares, eu tenho uma AK47; eu dou-lhe um tiro e fico com os dólares. Ele, com os dólares, não me tira a AK…” Simplista mas eloquente.
Kraemer foi, entre 1950 e 1980, uma espécie de guru da Junta de Chefes de Estado Maior no Pentágono, aconselhando vários presidentes. De Kissinger, do jovem Kissinger, escreveria: “Ele ainda não sabia nada, mas já percebia tudo”.
Quando da morte de Kraemer, Henry Kissinger acentuou a sua preocupação em descobrir nos outros, nos jovens, “qualidades que eles nem sempre se davam conta de ter”, encorajando-os a seguir “uma vida de honra e dever”, e acrescentando que, para Fritz Kraemer, os valores eram absolutos:
“Tal como os profetas antigos, [Kraemer] não fazia concessões à fraqueza humana ou à evolução histórica”. Daí, explicava o discípulo, vinha a causa do corte de relações (não se falavam desde o segundo mandato de Nixon, em 1973): ele, Kissinger, ao entrar na política activa como Conselheiro de Segurança Nacional de Nixon e depois como Secretário de Estado, entrara no reino do real e do contingente, no mundo da política, que Bismark definia como “a arte do possível”. Já para Kraemer, para o “profeta”, prosseguia Kissinger no elogio fúnebre do seu mentor, os valores eram eternos e os princípios para cumprir, sem olhar a consequências; ora o Político, o decisor político, precisava dos valores e da inspiração do Profeta, mas não podia viver, no imediato, segundo as suas prescrições.
Fritz Kraemer morreu aos 95 anos, em 2003, em Washington. Kissinger, apesar de julgar então no limiar da Eternidade (bem próximo, por isso, do mestre que velava), sobreviveu-lhe mais vinte anos.
Entre o ideal e o possível
Kissinger foi um fiel da Realpolitik, um admirador de Metternich e de Bismarck e de um mundo de ontem em que a Euro-América era o centro do poder. Foi um conservador realista, com os sucessos e os desastres de quem está no terreno – do buraco do Vietname à falsa paz de Paris e à engenhosa abertura à China. E, além de conselheiro de políticos, decisor político e estratega, escreveu muitos e bons livros. Creio ter lido os mais importantes: Nuclear Weapons and Foreign Policy, On China, Leadership-Six Studies in World Strategy, Diplomacy, The White House Years. E, claro, A World Restored: Metternich, Castlereagh and the Problems of Peace 1812-1822, um dos primeiros e, para mim, o melhor.
Mas é talvez no elogio fúnebre de Fritz Kraemer, o alemão da Norte-Vestefália que sempre me lembrou um oficial prussiano do Kaiser e que o jovem emigrado judeu teve a dita de encontrar na América, que Kissinger melhor se revela. É um texto notável, no reconhecimento e gratidão do discípulo pelo mestre, um in memoriam quase confessional. Um texto que vale a pena ler pela essência da relação entre o ideal – a grandeza ética que nunca se deve esquecer como guia – e o sentido do terreno e da manobra, essenciais para lá chegar.
Henry Kissinger, o controverso centenário que agora morreu, foi um bom exemplo desse compromisso.