Numa entrevista que deu ao Expresso, o Ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, informou que estava a ser feita uma “inventariação fina” e uma lista de património originário das antigas colónias portuguesas para eventual devolução, e explicou que isso estava a ser feito à margem de um debate público, que — depreende-se —, a efectuar-se, condicionaria ou envenenaria certamente as coisas. Dias depois, em declarações à Lusa, e precisando melhor, o ministro repetiu o seu desejo de que tudo seja tratado “de forma discreta e longe da praça pública” para não alimentar “guerras culturais artificiais”; reconheceu que “não há nenhum caso concreto de pedido (de devolução) e não há nenhum caso concreto (de objecto, obra de arte, etc.) identificado”; e sugeriu que como este “é um debate que tem ocorrido em todos os países, nomeadamente nos países europeus que foram potências coloniais”, Portugal deve seguir esse exemplo. Ou seja, o ministro decidiu agitar e dar gás a uma questão que não existe nem se coloca no nosso país e no seu relacionamento com as suas ex-colónias.

Por acaso trabalhei durante uns anos — poucos — no edifício do Museu Nacional  de Etnologia e a ideia que tenho dessa minha passagem por aquela casa, e do contacto que então tive com os seus investigadores e técnicos, é a de que não existiria muito onde as actuais pessoas politicamente correctas possam meter o dente. Há dias, na Rádio Observador, o historiador João Paulo Oliveira e Costa também duvidou que a tal “inventariação fina” desejada e promovida pelo governo português venha a descobrir e a inventariar grande coisa. O único saque de que tem memória foi o de Malaca, mas o produto desse saque nunca chegou cá nem a parte alguma pois perdeu-se num naufrágio. Abro aqui um parênteses para  notar que, nessa conversa/debate na Rádio Observador, o arqueólogo e museólogo Gonçalo Amaro, afirmou que teria havido alguns saques, sim, mas deu como exemplo um saque feito em África por… ingleses.

Mas fechado o parênteses, voltemos ao assunto. Admito que quer eu quer João Paulo Oliveira e Costa possamos estar enganados. Portanto — e ambos concordamos com isso —, nada a obstar que as coisas sejam inventariadas e a sua origem, sempre que possível, determinada e classificada. E que, se houver casos de apropriação indevida e entidades que as reivindiquem, essas peças museológicas sejam, como já tive oportunidade de dizer anteriormente, restituídas aos países de onde foram eventualmente roubadas. Não sendo esse o caso não vejo por que razão se pré-anuncia que irão ser devolvidas obras de arte, ou outras, às ex-colónias.

Uma vez que nenhuma entidade ou força exterior pressiona o governo português — a não ser o desejo de ecoar o que se faz lá fora — fica, então, a pergunta: o que fará correr Adão e Silva? O que o levará a disparar mais rápido do que a sua sombra? Será apenas oportunismo político para mostrar serviço e surfar a onda do politicamente correcto e do reparacionismo woke? Ou será um acto mágico-religioso de purificação, uma expurgação que elimine simbolicamente e em geral as impurezas e os pecados, os crimes e os abusos, do passado colonial?

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Não sei responder até porque não conheço o ministro de parte nenhuma. Noto, porém, que este sangrar-se em saúde tem manifestamente uma faceta de seguidismo, uma espécie de política “Maria vai com as outras”, que olho com desagrado. E que tem, também, subjacente, alguma ansiedade como se houvesse o enorme medo ideológico e político de descobrir — o que seria uma quase confirmação involuntária do chamado lusotropicalismo — que, tudo somado, não haverá em Portugal muito de mal-adquirido que deva ser devolvido.

Mas o que acho verdadeiramente inquietante é este desejo expresso de que as coisas sejam feitas de forma subterrânea, silenciosa, numa espécie de trabalho de toupeiras, longe dos olhos e das vozes do público. Ora, quando estará eventualmente em causa a devolução de peças, de artefactos, que são, em muitos casos, património nacional, o público deve ter uma opinião e ela deve ser ouvida. Estas coisas debatem-se pública e audivelmente noutros países, mas em Portugal o governo quer seguir um método diferente, completamente sorrateiro. Felizmente, na sua pressa de mostrar serviço, o Ministro da Cultura tropeçou nos próprios pés, teve um lapsus linguae, e ao mesmo tempo que nos disse que quer discrição e tudo feito nos bastidores, sem debates, para não desencadear o que designa por “guerras culturais”, foi ele próprio que, através da entrevista e, depois, do esclarecimento que decidiu fazer, trouxe o assunto para a praça pública e suscitou o debate. Não o suscitou em torno de um caso concreto, mas sim em geral e abstracto — ou seja, precisamente o que nos disse que não queria.

Porém, ainda bem que o fez. Graças ao ministro Pedro Adão e Silva podemos, felizmente, debater se Portugal deve — e, a ser esse o caso, em que condições — restituir peças museológicas às suas antigas colónias. E devemos discutir essa questão sem qualquer receio de que ela alimente “guerras culturais artificiais”. Essas guerras já existem e fingir que não é hipocrisia ou pior do que isso. As “guerras culturais” decorrem há vários anos no Ocidente, Portugal incluído — a devolução ou não-devolução de peças museológicas é apenas uma batalha dessa guerra —, e põem frente a frente as pessoas woke e aquelas que procuram resistir-lhes. Aliás, o governo do Partido Socialista tem dado apoio e cobertura a ambos os lados em confronto, alternadamente. Dá uma no cravo, outra na ferradura, como costuma dizer-se. No caso vertente, e uma vez que esta “guerra cultural” correrá no subsolo e estará a cargo de toupeiras (sem qualquer sentido pejorativo), ficamos sem saber não só o que fará correr Pedro Adão e Silva, mas, também, a qual dos lados dará cobertura.