A construção do complexo mitificante da identidade portuguesa operou-se ao longo dos séculos, com especial incidência a partir do século XVII, através dos discursos de tipologias diversas produzidos em diferentes contextos. Os autores de discursos que trabalharam para a definição de uma identidade portuguesa fizeram-no procurando responder, pela via do mito e da utopia, às grandes perguntas de sentido universal: de onde vimos? O que fizemos em conjunto, de extraordinário e diferenciador, no quadro da história universal? Qual foi a nossa idade de ouro, a fase modelar da nossa história? E para onde vamos? Qual a nossa missão futura no seio da grande família humana? Através das respostas a estas questões, preencheram o vazio do imaginário necessário para sedimentar o sentido de pertença de um povo, que passa a entender-se como nação.

A nossa quadratura mítica

Com as crónicas – primeiro por transmissão oral, depois pela escrita da poesia, da historiologia, da literatura, de tratados proféticos, da parenética, da oratória política – foi-se estabelecendo uma identidade nacionalizante portuguesa, plasmada através de uma quadratura mítica, com os seus quatro vértices:

i) a fixação de um mito das origens de Portugal por determinação divina (milagre de Ourique com revelação cristológica) ou de um povo português primigénio com origens na era patriarcal bíblica, fazendo remontar a génese de Portugal à era pós-diluviana descrita no primeiro livro da Bíblia, com o mandato de repovoamento da Terra por Noé e pelos seus filhos e netos; descrevendo ainda como comunidade primacial a tribo dos lusitanos, com a sua heroica resistência, liderada por Viriato, contra as legiões romanas;
ii) as narrações glorificantes da epopeia portuguesa das reconquistas cristãs e das gestas da expansão terreste no Norte de África e, mormente, das viagens marítimas, que permitiram o estabelecimento de uma rede imperial portuguesa em quatro continentes;
iii) o recorte de um tempo de apogeu, a exaltação de uma idade de ouro paradigmática entre todas as idades da história portuguesa (período dos descobrimentos, para a maioria, ou a Idade Média para outros, como Alexandre Herculano);
iv) a projeção de uma teleologia através da construção de uma utopia, de um tempo futuro de plenificação da história (V Império, Sétima Idade ou Terceira Idade do Espírito Santo, sob a liderança portuguesa).

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

As identidades nacionais modernas, especialmente na Europa, são, de facto, construídas na definição desta quadratura mítica, recorrendo aos materiais histórico-simbólico-religiosos, nomeadamente do judeo-cristianismo e da herança clássica greco-romana, em articulação com as especificidades do percurso histórico de cada povo. Muitos autores contribuíram para o estabelecimento deste mapa mítico da identidade portuguesa, podendo nós lembrar, para uma primeira grande etapa desta construção mitificante, alguns mais relevantes na tardomedievalidade, como Fernão Lopes e Gomes Eanes Zurara, e, da produtiva escola humanista, André de Resende, Duarte Pacheco Pereira, Damião de Góis, João de Barros, Fernando Oliveira e Luís de Camões, sendo conhecidas as suas crónicas, histórias, relatos de viagens e obras de poesia.

Reagir à perda e à depressão

Findo o período percecionado nos discursos identitários como a fase ascensional da história portuguesa, entrou-se numa etapa de depressão, com a perda da autodeterminação em favor da monarquia espanhola e o novo regime de união dual, sob os Filipes, entre 1580 e 1640, a que se seguiu a Restauração da Independência de Portugal. Esta fase complexa favoreceu a produção de literatura identitária.

Batalha de Alcácer Quibir, de Jorge Colaço – Museu Militar de Lisboa

Emergiu e impôs-se a corrente de messianismo político do sebastianismo – por via popular e respaldada na cultura erudita –, que prometia o regresso do Encoberto, D. Sebastião, desaparecido na Batalha de Alcácer Quibir (1578), como o Rei Restaurador e fundador de uma era messiânica de fundo cristão. Proliferou então, de forma pronunciada, o género literário profético, orientado para a promessa de futuros gloriosos para o povo português, como meio de sobrecompensação psicológica, segundo a hermenêutica de Eduardo Lourenço, em ordem a superar as experiências dramáticas e de incerteza vividas coletivamente. Neste contexto, sebastianismo, saudade do passado glorioso inconcluso e projeção de um futuro apoteótico uniam-se para servir uma estratégia de resistência.

Cultivava-se o que podemos classificar de “literatura de crise”, para responder a expectativas apoucadas pelos inimigos, que queriam impedir o uso pleno das historicamente conquistadas liberdades portuguesas. O projeto do V Império tem na sua base a aspiração identitária de recuperar Portugal como protagonista da história, enquanto líder político do destino da humanidade no plano temporal, liderança partilhada com um Papa Angélico, em Roma, no plano espiritual.

Autores do século xvii – como D. João de Castro, com a sua Paráfrase e Concordância de Algumas Profecias de Bandarra; Bocarro Francês, com a sua Anacefaleosis; Sebastião de Paiva, com o seu Tratado da Quinta Monarquia; e, sobretudo, o Padre António Vieira, com História do Futuro e A Chave dos Profetas – vão desenhar a utopia do V Império ou da 5.ª Monarquia, tornando este tópico um dos temas mais globais da literatura portuguesa.

O V Império

Neste afã de perscrutar os futuros, os vastos reportórios de profecias bíblicas, cristãs e paracristãs são considerados como um código para ler o porvir, pois dizem respeito a questões intemporais da história humana, que se repetem com expressões diversas nos diferentes contextos. O texto matricial do qual emergem todas as elucubrações sobre o V Império encontra-se no capítulo 2 do livro do Profeta Daniel: a pedra que se destaca da montanha e ataca a estátua do sonho do rei Nabucodonosor é Cristo, o messiah, o ungido, e o seu Reino de Deus consumado na Terra, ou, por antonomásia, o V Império, como sinal profético da irrupção do divino na história para realizar o melhor sonho da humanidade, em sintonia com o desígnio de Deus.

Vieira, o autor português que mais extensamente se empenhou na possibilidade da realização efetiva do V Império e sobre ela escreveu, tentou até conciliar as tradições hermenêuticas judaica e cristã em diálogos de concórdia na sinagoga de Amesterdão, com o rabino Menassés Ben Israel. A paleta exegética tanto poderia permitir compaginar o V Império com a era messiânica esperada pelos judeus, como com a instauração do Reino de Cristo consumado na Terra, esperado pelos cristãos num século de grande expectativa quanto a uma alteração substancial do curso da história. Esta grande transformação, que representaria um salto qualitativo na história da salvação, teve um ano apontado para a inauguração da era milenar de paz: 1666. Esta data detinha um explosivo complexo simbólico: encerrava o número da Besta predita no capítulo 13 do Apocalipse, então identificada com o poderio otomano. Numerologicamente, tendo por referência o valor numérico das letras do alfabeto grego, representava o nome escrito em genitivo de  M  A  O  M  E  T  I  S (40  1   70   40   5   300   10   200  = 666). Cabalisticamente, fazia um conto cheio, grafado com todas as letras da numeração romana, ordenadas por ordem decrescente (MDCLXVI), significando o ponto de chegada de uma contagem para um termo do fluir cronológico da história. A passagem dramática para o V Império seria marcada por um “dilúvio de sangue”. Seria uma espécie de batismo pelo sangue, imaginado na guerra final contra o otomano.

O V Império de Vieira era protocosmopolita e protoecuménico. Propunha uma reforma imensa, que era, no seu contexto, quase um tipo de revolução. Não sugeria uma rutura com a Igreja Católica, mas anunciava uma transformação profunda, para um futuro muito diferente da experiência de crise contemporânea. Um tempo novo caracterizado pela unidade e pela diversidade, por uma abrangência global dos benefícios de uma era de concórdia, da integração de diferenças religiosas e culturais, nomeadamente dos povos judeu e ameríndio. Seria um império de Paz, Amor, Justiça, Concórdia, Fraternidade, o qual representaria o fim da desunanimidade doutrinal resultante das fraturas doutrinárias heréticas que marcaram a Europa Cristã do tempo de Vieira, com ondas de choque globais.

O V Império no mercado mundial

O V Império é, com efeito, um tema caleidoscópico do pensamento utópico, não sendo exclusivo da herança cultural portuguesa. Presta-se às mais diversas abordagens interdisciplinares, mas é no campo da literatura que conhece a mais plurifacetada elaboração e recriação. Impérios europeus – como o francês, o inglês, o espanhol, o polaco e o russo, que desenvolveram projetos expansionistas de vocação global – procuraram na projeção de uma utopia universal de concórdia e prosperidade, a implantar sob a sua liderança, um modo de potenciar e legitimar, sob um desígnio providencialista de alcance teleológico, o seu desiderato presente de expansão intercontinental.

A formulação de um projeto futuro de 5.ª Monarquia, fundada sob o protagonismo de um país, foi disputada, numa espécie de “mercado” cultural quinto-imperialista, por um leque alargado de países. De tal modo que, no século xix, até nos Estados Unidos da América se observou a projeção de teleologias análogas. Na verdade, este tipo de elaboração utópica fazia parte do esforço de consagração identitária da ideia de nação e de uma espécie de legitimação religiosa dos projetos de construção de impérios globais no horizonte.

Agostinho da Silva e Fernando Pessoa

Por seu turno, o V Império é uma das ideias mais metamórficas da cultura portuguesa, com influências e projeções globais, assente em textos sagrados canónicos e deuterocanónicos e que conhece modelações singulares na nossa literatura. Aqui está um caso eloquente de como os textos bíblicos são fecundadores da literatura universal, inspirando elaborações utópicas. De tal modo que o princípio de “integração” da diferença, afirmado utopicamente pela pena de Vieira, acabou, surpreendentemente, por mudar o olhar sobre o Islão: na matriz quinto-imperialista vieirina, era o polo negativo do V Império, só subjugável pela força e visto como a dor do polo positivo; na posterior reformulação quinto-imperialista, já no século XX, especialmente por Fernando Pessoa, em textos como Mensagem, e por Agostinho da Silva, em escritos como Considerando o Quinto Império, torna-se negativo o que era extremamente positivo (ou seja, a Igreja Católica), engrossando o grupo dos infiéis, em favor da construção de uma sociedade gerada por um processo de sincretismo total e global de todas as raças e culturas humanas.

Este desiderato utópico alcançar-se-ia por um processo de comunhão suscitado pela língua e pelo espírito de fraternidade do modo português de estar no mundo. O V Império é agora o novo espírito de civilização de carácter radicalmente cosmopolita. Aqui deparamos com a acentuação de uma coincidência mais declarada entre duas utopias que se cruzam: a do V Império e a da Terceira Idade do Espírito Santo, idealizada, na Idade Média, por Joaquim de Fiore.

Até escritores estrangeiros, como é o caso emblemático de Raymond Abellio, após a Revolução dos Cravos, em 1974, sob um prisma ideológico e esotérico, nos apresentavam Portugal, antigo lugar mítico da finisterra, como a pátria a partir da qual se expandiria o V Império, pois ali se estaria a travar um combate decisivo entre dois universalismos de sinais opostos: o marxismo e o quinto-imperialismo.

Um futuro luminoso para a humanidade

O V Império conheceu ainda novas metamorfoses, patentes na escrita utópica de Natália Correia, que o compagina com a afirmação plena dos valores femininos, através da evolução da velha ideia de “pátria”, de referência “masculina”, para a ideia de “mátria”, que permitirá a assunção de uma sociedade global assente numa ideia de “frátria”, para disseminar o espírito de fraternidade à escala planetária. Mais recentemente, detetamos ecos da ideia de V Império no plano da utopia política presente no projeto de um Tribunal Constitucional Internacional para garantir o cumprimento isométrico dos Direitos da Humanidade à luz de uma constituição universal reconhecida globalmente para este efeito, como tem sido propugnado por Paulo Ferreira da Cunha e o seu grupo internacional de proponentes jusfilósofos.

Como o estudioso francês Raymond Cantel já intuía, o V Império, no modo como foi idealizado por Vieira, escancarou portas para ser repensado e atualizado nos séculos seguintes, potencializando ao máximo a sementeira cosmopolita, integradora da diferença, para ajudar a equacionar e resolver, no plano utópico, questões de discriminação e exclusão desencadeadas por toda a espécie de absolutismos, racismos, eugenismos e suas expressões políticas, até às atuais e controversas questões de género. Na ideia de V Império cruzam-se temas mítico-literários e teológico-filosófico-literários, com ecos transepocais e transespaciais, procurando abarcar um horizonte de compreensão globalizante de um futuro luminoso para a humanidade, na relação harmónica com a natureza.

O Quinto Império constitui-se assim na história da cultura portuguesa como uma prova póstuma de que o nosso passado transporta uma mensagem significativa para a transformação futura da humanidade.

Nota: Este artigo retoma e atualiza sínteses de pesquisa já publicada pelo autor.

[Os artigos da série Portugal 900 Anos são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência de Portugal.]