Sou médico veterinário e estou aqui para lhe falar de contas do seu animal. Sim, daquelas mesmo dolorosas, que são altas e surgem mais em tom de ultimato do que escolha: ou paga e trata, ou não paga e perde o seu companheiro não humano. Apesar de ser veterinário há mais de uma década, este é um tema que compreendo e me é familiar porque vivi os dois lados da moeda. Há cerca de 14 anos atrás quando estava na faculdade a minha cadela desenvolveu uma infeção no útero, uma doença de resolução urgente e de carácter cirúrgico. Estávamos em plena crise económica e enquanto família simplesmente não conseguíamos suportar o custo. A minha faculdade não operava sem o pagamento prévio da totalidade e os 3 ou 4 hospitais/clínicas a que fui pedir fiado de olhos aguados não atenderam ao meu drama. Com pouca dignidade e um rosto lacrimoso, na quinta ou sexta tentativa houve um veterinário que se compadeceu e aceitou baixar o preço e fazer duas prestações – salvou-me a cadela e deu-me uns bons anos com ela.
Muitos anos volvidos, sou eu o médico veterinário e não serei eu a dizer-lhe que as contas são pequenas- não são. Uma doença urgente que envolva uma despesa de 1000 ou 2000 euros no seu tratamento (um diabético descompensado ou uma cirurgia ortopédica por exemplo) é um rombo importante no orçamento da classe média portuguesa. Se pensarmos que o ordenado médio português ronda os 1500 euros brutos, então é dizer a uma família que terá de investir praticamente um mês de trabalho no seu animal, muitas vezes sem que isso garanta que ele vai sobreviver. Nós veterinários compreendemos isso e estamos completamente alinhados com os tutores na motivação de não haver sofrimento para os animais, motivo pelo qual face à impossibilidade económica no tratamento de uma doença grave, a eutanásia é não só uma decisão aceitável como, muitas vezes, sensata.
Dito isto, vai um grande salto entre considerar que uma conta é elevada, para dizer que uma conta é injusta. Esta é uma distinção fundamental, na medida em que a primeira frase é uma constatação, mas a segunda torna-se um ataque ao trabalho dos médicos veterinários. Este é um salto de ignorância frequente, dado até por figuras da praça pública. Esta precipitação dá-se por dois desfasamentos da realidade: o primeiro é uma incapacidade de relacionar o preço com a qualidade do serviço e o segundo é por uma total ilusão da realidade laboral dos médicos veterinários.
Relativamente ao preço, a perceção é imediatamente enviesada pela comparação com os preços da medicina humana. De facto, tomamos a saúde tão por garantida que quando pagamos 5 euros por um raio x na saúde humana nos esquecemos que esse pequeno custo é já posterior ao valor investido pelo Estado na saúde, ou seja, 1400€ anuais pagos por cada membro da população portuguesa (2600€/ano por cabeça se considerarmos apenas a população ativa). Se compararmos os preços da medicina veterinária com os preços da medicina humana privada fica óbvio que a veterinária é muito mais barata: em 2023 o preço médio de uma consulta veterinária hospitalar foi de 32€, uma consulta num hospital privado de humana custava cerca de 90€. Aqui é também fulcral perceber que a medicina veterinária paga 23% de IVA enquanto a saúde humana paga 0%. Contas feitas, na veterinária, 7 daqueles 32€ vão para o Estado enquanto na medicina humana aqueles 90€ são já livres de impostos. A forma mais exequível, rápida e justa de baixar os preços da veterinária não é vilipendiar a classe veterinária, é exigir que o fisco cobre à medicina veterinária o mesmo que cobra à medicina humana e dentária: 0% de IVA.
Para melhor compreendermos os custos da veterinária temos de perceber o que estamos a pagar. Falando em números redondos, por cada euro que gasta no veterinário 50 cêntimos são para pagar ordenados (não só dos veterinários, mas também dos auxiliares, enfermeiros, etc.). Sensivelmente 18 cêntimos vão para custos diretos de material (as seringas, vacinas, medicamentos, etc.), 22 cêntimos para custos indiretos (os impostos levam a fatia de leão, mas também rendas, seguros, etc.) e, por fim, 8 cêntimos são lucro líquido. Sim, leu bem, de acordo com a principal consultora veterinária portuguesa, a rentabilidade líquida média de um centro veterinário é de aproximadamente 8%, ou seja, por cada euro faturado a empresa tem um lucro líquido de 8 cêntimos.
Existe ainda um último fator que não posso deixar de fora por aumentar o valor dos cuidados da medicina veterinária e estar relacionado com a qualidade. Concordará o leitor que o valor social dos animais de companhia em Portugal tem vindo a aumentar, sendo atualmente exigido no seu tratamento e posse uma enorme responsabilidade. Hoje, a perda de um animal é muitas vezes verbalizada como a perda de um elemento familiar, havendo muito maior apego emocional e social aos animais do que há 15 ou 20 anos. Os tutores choram, enlutam, ficam transtornados ao ponto de pedirem baixas médicas e, quando acham que houve negligência, fazem difamações e movem processos legais. Do outro lado, está um veterinário que valoriza tanto os animais que os designou como recetor do seu estudo e trabalho e que, portanto, também sente a pressão de trabalhar com um bem social precioso.
Se concordamos que o valor dos animais aumentou na sociedade então é apenas lógico admitir que a responsabilidade dos veterinários é igualmente maior. A profissão respondeu a esta nova realidade fazendo investimentos que garantem uma melhor segurança e eficácia das suas práticas. Infelizmente, a incrementos de segurança, eficácia e bem-estar, correspondem necessariamente aumentos de preço. Existe claramente um aumento de preços nos serviços veterinários porque é preciso refletir no consumidor o acréscimo de qualidade que os serviços tiveram. Contudo, muitos tutores continuam a pensar de forma linear – há 10 anos pagavam 200 euros por uma esterilização e agora cobram-lhes 400€. O que os tutores não têm consciência é que há 10 anos esses 200 euros estavam a pagar uma injeção anestésica, a ajuda de uma auxiliar (muitas vezes a rececionista), um kit de instrumentos cirúrgicos, um bloco de assepsia questionável, colar isabelino, analgésicos e antibióticos. Hoje em dia os 400 euros pagam um enfermeiro anestesista, um painel de análises pré-anestésicas (como se faz na medicina humana), uma anestesia volátil numa máquina com ventilador e monitorização que custa 20 a 30 mil euros, soro endovenoso numa infusora que custa 500 euros, vasos laqueados com um selador vascular (como na medicina humana) que são outros tantos milhares e o doente vai para casa com só analgésicos porque o bloco é estéril e não são precisos antibióticos. Os preços da medicina veterinária aumentaram sobretudo porque o valor social dos animais de companhia tornou inadmissível os erros decorrentes de se trabalhar com más práticas e maus equipamentos. O nome do que fazemos hoje pode ser igual ao do que fazíamos há 20 anos atrás, mas os procedimentos mudaram radicalmente, e isto aplica-se a muitos outros casos: antigamente amputava-se um membro, hoje faz-se cirurgia ortopédica avançada; há uns anos dizia-se: “tem uma massa, vamos ver como corre”, hoje fazemos punção, diagnosticamos a origem, identificamos marcadores tumorais, propomos quimioterapia e até radioterapia.
A medicina veterinária evoluiu e com ela os preços. Para um tutor ter acesso aos preços de “antigamente” então tem de encontrar um veterinário disposto a fazer medicina retrógrada, algo felizmente cada vez mais raro nos dias de hoje. Num mercado competitivo como é o da veterinária portuguesa, a significativas diferenças de preço muito provavelmente correspondem significativas diferenças de qualidade.
Do lado dos veterinários isto foi “ouro sobre azul”. Permitiu-nos implementar práticas cada vez mais próximas da medicina humana, prevenindo, diagnosticando e tratando muito melhor do que há uns anos atrás, com claros ganhos na qualidade e esperança média de vida dos nossos doentes e muito menos riscos. Infelizmente não o podemos fazer sem custos acrescidos. Do lado do tutor, esta convicção de que o seu animal de estimação é um membro da família e um companheiro inestimável dá-lhe o direito de exigir as mais seguras e eficazes técnicas disponíveis no tratamento do seu animal, mas também lhe imputa o dever de as pagar. O direito de possuir algo valioso é indissociável do dever de o manter são e ter as provisões financeiras necessárias para danos que possam surgir. As coisas valiosas da nossa vida merecem ter um fundo de salvaguarda, as mais valiosas merecem ter seguro.
Infelizmente, em Portugal a veterinária carece de uma entidade que certifique e estratifique a qualidade da medicina praticada, como acontece no Reino Unido por exemplo. Assim, e porque os tutores são na maioria dos casos incapazes de avaliar a parte técnica do trabalho realizado, acabamos com escolhas baseadas no preço e na confiança. Quanto a isto, serei claro: é totalmente legítima uma escolha de um serviço baseada no preço, desde que se aceite que num mercado competitivo como é o nosso muito provavelmente grandes diferenças de preço refletem diferenças significativas de qualidade e segurança.
É-me também impossível falar no assunto dos preços sem desmistificar o segundo grande desfasamento da realidade dos tutores: as condições laborais dos médicos veterinários. Isto torna-se especialmente importante porque os tutores tendem a culpar diretamente os salários e as margens de lucro das empresas veterinárias pelos altos custos desta medicina. Estão factualmente errados.
Os dados não deixam margem para dúvidas: em 2020 59% dos médicos veterinários auferia menos de 1200€ líquidos mensais e apenas 10% destes profissionais conseguia ganhar mais do que 2001€ líquidos por mês. Os dados mais recentes de 2023 mostram que somos os quintos pior pagos entre 37 países Europeus com um rendimento médio de 19200€ brutos por ano, ou seja, 1600€ brutos por mês, já com duodécimos. É também importante referir que este valor inclui frequentemente trabalho por turnos, fins de semana, urgências, trabalho noturno e que cada veterinário reporta trabalhar, em média, 5 horas extraordinárias por semana (valor que ultrapassa máximo anual permitido por lei). Somos profissionais com formação acima da média, que trabalhamos com condições abaixo da média, para recebermos o salário médio e termos fama de milionários! Mais ainda, afirmo com conhecimento de causa que uma grande parte destes vencimentos é constituído por subsídios e ajudas de custo numa tentativa de fugir aos impostos aplicados aos salários base, criando mais alguma liquidez no bolso à custa de uma enorme precariedade na parentalidade, doença ou na possibilidade de pedir um empréstimo para habitação.
No maior estudo sobre a veterinária Europeia envolvendo 37 países o que os veterinários portugueses dizem sobre a sua situação não deixa margem para dúvidas acerca de como se sentem: somos os menos satisfeitos com os seus ordenados, os menos satisfeitos com a sua qualidade de vida e os segundos menos satisfeitos com a escolha de serem médicos veterinários. Somos também os mais stressados da Europa e mais de metade dos veterinários portugueses pensa frequentemente em abandonar a profissão. Num país em que 15% dos veterinários pensa significativamente em abandonar a própria vida, fiquemos satisfeitos pelos que têm o bom senso de abandonar apenas a profissão.
Mas de onde vem então esta imagem de sucesso dos médicos veterinários? Sobretudo de uma aposta num marketing positivo em que veterinários sorridentes vacinam cachorrinhos saudáveis e brincam com gatinhos marotos, em que vendemos a celebração da relação dos animais com as suas famílias felizes. Ter anúncios ilustrando veterinários mal pagos, exaustos e stressados, que têm um risco de suicídio altíssimo, a tratar de animais doentes e com dor, num dia a dia repleto de vómitos e diarreias e constantemente preocupados com orçamentos enquanto se tentam focar na saúde dos seus doentes não é lá muito apelativo para o negócio.
Por conhecer os dois lados da moeda, dou por mim dividido entre achar que é um dever dos tutores financiarem a prevenção e tratamento dos seus animais, mas também ter a noção de que ter animais não deve, nem pode, ser um direito reservado às elites. Relembro o meu caso, em que uma família normal da classe média de repente se viu estrangulada por uma crise financeira e sem recursos para uma cirurgia de emergência no seu animal. Relembro o meu caso, e também não posso ignorar que se tivéssemos investido na prevenção através da esterilização não estaríamos naquele aperto. Um passado de poupança da prevenção tende a significar um futuro acompanhado de uma pesada e inesperada despesa. Nessa altura, é sempre tentador projetar nos outros as consequências das nossas escolhas.
Não tenho uma solução para esta dúvida, mas tenho a certeza de que para cada decisão tomada há uma responsabilidade correspondente. Cada família é livre de ter ou não ter um animal, frequentemente consegue até optar entre um rafeiro robusto ou uma raça XPTO cheia de problemas, tem ainda a escolha entre investir na prevenção de doenças ou de arriscar fiando-se que não vão acontecer azares. Se tudo isto é escolha do tutor, não consigo compreender porque é que na hora de pagar a culpa passa a ser do médico veterinário. Os tutores dizerem que os veterinários são uns gananciosos de bolsos cheios tem como equivalente os médicos veterinários começarem a dizer que os donos de bolsos vazios são uns irresponsáveis. Ambos os casos são injustos, desajustados e revelam uma fraca empatia. As contas veterinárias são altas, é verdade, mas também são justas porque a esmagadora maioria do valor gasto serve para pagar o serviço em si, não sendo lucro nem do veterinário nem da empresa. Barato e bem não faz ninguém. No fim, pagamos para poder ter aquilo que não tem preço: o carinho, amor e companhia dos nossos animais.