Se está a ler este texto e tem entre 15 a 35 anos, a probabilidade de já ter consumido conteúdos pornográficos é de entre 70 e 80%. Se for do sexo masculino, esta probabilidade aumenta para valores em torno dos 90%, de acordo com as conclusões do estudo “Os jovens em Portugal, hoje”, da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
De entre os poucos estudos que há especificamente sobre a realidade portuguesa, sabemos que a tendência tem sido crescente e que o primeiro contacto com estes conteúdos ocorria, em média, aos 11 anos antes da pandemia. Hoje estima-se que a estreia seja ainda mais precoce.
Todos sabemos que o problema existe, mas importa recordar que, se para consumir pornografia há 20 anos, havia a necessidade de adquirir revistas ou cassetes em lojas às escondidas e ter mais de 18 anos, hoje qualquer criança com 8 ou 9 anos que tenha um smartphone tem, numa fração de segundo e em qualquer lugar, acesso a mais conteúdos pornográficos em poucos minutos do que os seus pais ou avós ao longo de toda a vida. Sendo certo que os conteúdos a que se pode aceder hoje de forma gratuita são significativamente mais violentos e degradantes do que há algumas décadas atrás.
Assim, poder-se-ia argumentar que há 20 anos o consumo de pornografia era um problema essencialmente moral ou do foro privado, mas hoje sabemos que se trata de uma verdadeira crise de saúde pública que urge combater com todos os meios ao nosso alcance. É a ciência quem nos diz isto. Talvez não saiba, mas nos últimos 20 anos – em paralelo com a utilização crescente de computadores, smartphones e da internet de alta velocidade – tem vindo a ser produzida muita literatura científica que nos indica que o consumo de pornografia tem consequências muito mais graves para a saúde mental, sexual e relacional do que poderíamos alguma vez ter imaginado.
Em primeiro lugar, é importante compreender que hoje sabemos que a pornografia tem um impacto semelhante a uma droga pesada no cérebro daqueles que a consomem.(1) Simplificando a explicação técnica, poderíamos resumir o mecanismo da seguinte maneira: quando consumimos conteúdos pornográficos, é libertado um neurotransmissor chamado dopamina em grandes quantidades, que produz uma sensação agradável que, naturalmente, temos tendência a procurar novamente. O mesmo acontece quando consumimos drogas. Felizmente, o nosso cérebro tem mecanismos de defesa que levam a que receção repetida do mesmo estímulo desencadeie uma sensação de prazer cada vez menor. Nesse momento, ou temos o autodomínio suficiente para perceber que aquele estímulo nos faz mal e paramos, ou sentimos uma dependência tal daquela sensação agradável que pensamos que não conseguimos viver sem ela, levando-nos a querer consumir com mais frequência e a procurar conteúdos cada vez mais violentos e bizarros. É essencialmente o mesmo comportamento que observamos nas adições químicas quando se passa de uma droga leve para drogas cada vez mais pesadas.
Também como nas adições químicas, este padrão leva a alterações graves no nosso cérebro, por exemplo afectando a capacidade de planear e tomar decisões racionais – uma condição que designamos por hipofrontalidade (2) – efeitos que são amplificados nas crianças e jovens que têm o seu cérebro ainda em desenvolvimento.
Deste modo, não é de estranhar que, pelo menos 1 em cada 3 vídeos pornográficos (3), promovam violência, agressões físicas e verbais e que os termos mais procurados nestes sites sejam consistentemente palavras como “teen”, “step mom” ou “step sister”, “anal”, ou “gangbang”, só para dar alguns exemplos.
Outro efeito habitual do consumo de pornografia no nosso cérebro é a perda a capacidade de reconhecermos a humanidade dos outros, principalmente das mulheres (4). Dito de outra forma, o consumo de pornografia está associado à objectificação da mulher e à consequente desvalorização do consentimento, passando a ideia falsa e perigosa de que as mulheres gostam de ser contrariadas e que o “não” poderá querer dizer “sim”.
Finalmente, importa saber que o consumo de pornografia está associado a um maior risco de doença mental, depressão, solidão, ansiedade, menor autoestima, uma vida sexual e relacional menos satisfatória, estando ainda associada ao recente crescimento exponencial de disfunção eréctil e impotência em jovens adultos (5).
Em Portugal não gostamos muito de falar destes assuntos, mas é hora de quebrar o tabu e dizê-lo de forma muito clara: sexo e pornografia não são a mesma coisa. Com tudo o que sabemos hoje, não podemos permitir que os nossos filhos sejam educados para a intimidade e para o afeto pela grande mentira que é a pornografia. Uma mentira que transmite expectativas e preconceitos tóxicos sobre o que deve ser o corpo da mulher, a intimidade sexual, além de normalizar a violência contra as mulheres, desvalorizar totalmente a importância do consentimento, e de promover outros estigmas sociais, como o racismo (6).
No documentário “A pornografia grátis está a destruir os nossos cérebros?”, o Dr. Abraham Morgentaler, professor de urologia em Harvard, sintetiza da seguinte forma (tradução livre):
“Estou preocupado. Preocupa-me o impacto da pornografia nos homens e nas mulheres… Muitos dos homens que crescem hoje a assistir a pornografia na internet aprendem sobre sexualidade e excitação de uma forma que não corresponde ao sexo real. O que a pornografia compreendeu foi o que realmente impacta o cérebro: estímulo máximo.”
Hoje existem, felizmente, muitos recursos que podem ajudar pais, professores e outros educadores a compreender melhor este fenómeno e comunicar os seus riscos de forma mais eficaz. É da maior importância estarmos todos conscientes dos riscos que a pornografia traz para a saúde mental, sexual e para a forma como nos relacionamos em sociedade.
Pais e educadores são insubstituíveis como primeira linha de defesa da integridade das crianças e jovens, mas também o Estado pode e deve ter um papel a desempenhar. É precisamente o que está a acontecer já, por exemplo, em Espanha, no Reino Unido, em França, ou nos Estados Unidos, onde os Governos procuram já soluções eficazes para proteger os menores de conteúdos violentos na internet.
Em Portugal, foi com agrado que lemos as recentes declarações de Aguiar-Branco a pedir um consenso alargado em torno da proteção das crianças do contacto com a pornografia. Notámos também que a Proposta de Estratégia Global que Luís Montenegro levou ao Congresso do PSD identifica precisamente o combate à pornografia como uma das suas prioridades e a discussão no parlamento em torno da disseminação não consensual de imagens. Tudo isto é importante, mas é apenas a ponta do iceberg. É preciso fazer mais e mais rápido.
O que faríamos se de repente soubéssemos que 80% dos jovens em Portugal consomem heroína ou cocaína com regularidade? E se não só consumissem estas drogas pesadas, como estas lhes fossem disponibilizadas gratuitamente, na quantidade que quiserem e onde quiserem? O que está a acontecer hoje é isso mesmo, só o nome da droga é outro.