A monocefalia do Império foi sempre uma característica fortíssima da organização do território e da construção do Estado Português ao longo dos séculos. Por volta de 1800, Lisboa representava 55% da população urbana nacional total, Porto 13,75% e Braga não chegava a 5.5%. Nenhum outro país de referência na Europa, seja Grã-Bretanha, Holanda ou França, tinha tamanha concentração de população urbana em apenas uma cidade. Aliás, conhece-se bem a experiência europeia pós-queda de Roma. Uma rede impressionante de cidades poderosas distribuídas pelo continente cheias de relevância e algumas delas berço do Renascimento.

Note-se o caso da Holanda para ilustrar a anormalidade do caso português no contexto europeu. No mesmo período de 1800, as três cidades mais urbanizadas eram (% da população urbana holandesa):

  • North-Holland: 33%
  • South-Holland: 24%
  • Gelderland: 7%

O processo de urbanização em Portugal aconteceu tardiamente, de forma lenta e muito aquém dos processos evolutivos que ocorriam nas suas congéneres europeias. Tal facto, teve implicações muito importantes na forma como, ao longo dos séculos, o poder se foi descentralizando, ou não, e a riqueza distribuindo, ou não.

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Só na segunda metade do século XX se conseguiu uma legitimação territorial do Estado a partir de um esforço de investimento no interior. Três foram os fatores deste atraso histórico:

  • A homogeneidade identitária em torno de um conceito de Nação desde pouco depois da sua formação (desde o século XIII, segundo José Mattoso), causa e consequências da ausência de clivagens étnicas ou territoriais;
  • um modelo de tributação e de finanças públicas assentes em receitas fiscais geradas pela reexportação de produtos coloniais e não em receitas internas do reino que teriam exigido uma organização económica e administrativa do território nacional, não obstante a ação legisladora de Mouzinho da Silveira, há já quase 200 anos, para uma reforma e modernização do Estado.
  • a enorme disparidade económica e social entre Lisboa e o resto do país que resultou, ao nível económico, num alheamento das elites da capital e, ao nível político, na captação do interior pelo caciquismo urbano acentuando ainda mais o já frágil empoderamento do interior.

Como se “organiza”, então, uma Nação sem um Estado organizado e legitimado em todo o território? Organiza-se em tribos e famílias. E que duas características socioeconómicas fundamentais este tipo de organização tipicamente revela? Por um lado, laços internos (in-group) muito fortes; por outro, laços externos (out-group) muito fracos mediados por uma identidade nacional muito homogénea. E qual foi o resultado a nível nacional desta assimetria de forças in-group e out-group? Um conceito partilhado de espaço comum e público muito pouco desenvolvido.

Poucos serão os que contestarão que os laços familiares em Portugal são fortes. Não só o conceito de família inclui facilmente três ou quatro gerações vivas (avós, pais, irmãos/irmãs e filho(a)s) e também primos, primas, tios e tias, o que contrasta sobremaneira com, por exemplo, a sociedade escandinava ou anglo-saxónica, como também a quantidade e diversidade de interações entre eles e elas é elevada.

E quanto aos laços externos entre famílias? O relatório Os Valores dos Portugueses: Resultados do European Value Study de Alice Ramos e Pedro C. Magalhães preparado para a Fundação Gulbenkian, que retrata a sociedade Portuguesa nos 30 anos, dá-nos a resposta. “Continuamos a estar entre as populações europeias que menos confiança têm nos seus concidadãos”. Noutras sociedades “uma elevada confiança generalizada interpessoal indica a perceção de que os outros não querem (ou, pelo menos, não conseguem) procurar sistematicamente benefícios para si próprios em detrimento dos nossos interesses.” (ver as duas figuras imediatamente em baixo)

Indicador de confiança interpessoal em Portugal em 2020. Percentagem de pessoas que escolhem a opção “Pode-se confiar na maioria das pessoas” em vez de “todo o cuidado é pouco”.

Indicador de confiança interpessoal na Europa em 2020. Percentagem de pessoas que escolhem a opção “Pode-se confiar na maioria das pessoas” em vez de “todo o cuidado é pouco”.

Confirmadas as teses dos laços fortes in-group e dos laços fracos out-group, que evidência existe então sobre o deficit de uma cultura comum de espaço comum e público? O mesmo relatório indica que os portugueses e portuguesas estão “entre aquelas que menos se envolvem em atividades de voluntariado.”

Indicador de cultura cívica na Europa em 2020. Percentagem de pessoas que escolhem a opção “Fez trabalho de voluntariado nos últimos seis meses?”

O fenómeno da corrupção e criminalidade conexa em Portugal, entre outros fenómenos como o nepotismo, conflito de interesses e porta-giratórias, tem profundas raízes institucionais e sociais que precisam de ser identificadas e corrigidas, se não mesmo amputadas. Depois de o serem, o combate contra a corrupção e injustiça social exige, por muito pouco plausível que aconteça, um pacto nacional entre PS e PSD ou, em alternativa, uma firme disposição de um semipresidencialismo efetivo que conduza o Parlamento no sentido de um desígnio nacional com visão, metodologia, recursos, prazos, metas e avaliação ao longo do tempo. Todos seremos poucos porque a luta contra a corrupção é uma batalha entre tradições tribais e a construção nacional.