A União Europeia construiu-se como um projecto de paz, prosperidade e liberdade. Nos seus valores fundacionais primava o livre comércio e a livre concorrência, tendo o mercado interno sido construído sobre 4 liberdades fundamentais: livre circulação de pessoas, bens, serviços e capitais. Dessa liberdade, viria a prosperidade. Da prosperidade, surgiria a paz. E em paz, haveria mais liberdade. Um círculo virtuoso que nos trouxe ao século XXI.
As políticas comercial e de concorrência foram, durante anos, bastiões absolutos dessa Europa das liberdades. Uma Europa que se queria aberta ao mundo, capaz de negociar acordos de comércio livre, exportadora e importadora, e que protegia, no mercado interno, os operadores económicos da existência de monopólios e abusos de posição dominante, mas também da excessiva ingerência estatal, com um complexo e apertado controlo de subsídios e auxílios de Estado. A política de concorrência era essencial tanto para a defesa das regras do mercado interno, como para a protecção dos consumidores e para a livre concorrência entre operadores, incluindo a liberdade de entrada no mercado. Um mercado com barreiras à entrada, seja pela existência de monopólios, seja pelo abuso da posição daqueles que já o dominam, nunca será um mercado livre.
No entanto, esta lógica fundacional, de liberdade, poderá ser, dentro de pouco tempo, coisa do passado. O mundo mudou e a Europa viu-se sozinha e com necessidade de assegurar a sua autonomia estratégica. Os Estados Unidos progressivamente foram virando as costas ao parceiro Europeu e redescobriram um novo apego ao proteccionismo seja ele America First ou Buy American. A Rússia deixou de ser o parceiro comercial de onde chegava o gás barato que alimentava a indústria alemã, para ser percepcionada como uma ameaça real à segurança das nossas fronteiras. A China deixou de ser um apetecível destino para a deslocalização de produções, para ser um rival sistémico que comporta riscos e perigosas dependências. Entretanto, o Reino Unido, um dos maiores defensores desta Europa aberta ao comércio e do mercado livre, e um importante contrapeso ao centralismo, abandonou a União.
Assim, União Europeia acorda, agora, sobressaltada num mundo cheio de concorrentes, com inimigos à sua porta, com as suas indústrias deslocalizadas, o seu PIB a crescer menos que o dos seus rivais, sem gigantes tecnológicos que concorram com os americanos e sem capacidade de inovação ou de investimento como aquela que existe nos EUA e na China. Este diagnóstico, assuma-se, é dramático, mas, ainda assim, cada vez mais unânime. É o Sozinho em Casa, versão geopolítica. Qual Kevin, o miúdo franzino do filme, a UE tem agora a seu cargo a tarefa de proteger a casa e assegurar o seu sustento, sem fazer demasiadas asneiras. Não é tarefa fácil e não sei até que ponto a União Europeia será tão rápida e cheia de estratagemas inteligentes como os de Kevin McCallister.
Se durante anos a Europa evitou, no seu território, toda aquela indústria que sujava ou cheirava mal, agora os ventos mudaram e é tempo de voltar a produzir o que largamente confiámos que outros fizessem por nós, criando dependências de geografias que não são amigas nem aliadas. Presentemente, o apelo generalizado é para recuperar esses empregos de fato macaco, que sujam as mãos e cheiram mal. A reindustrialização é o novo grande projecto Europeu, sendo transversal a todas as políticas: defesa, automóvel, farmacêutica ou espacial. Se no último mandato o Green Deal foi vendido como o momento “man on the moon” Europeu, para os próximos 5 anos a tendência é um novo European Industrial Deal, como pede a Declaração de Antuérpia.
Nesse mesmo sentido, o Relatório Letta sobre o funcionamento do mercado interno, documento fundamental para perceber o contexto dos próximos 5 anos, sugere o aprofundamento da integração económica da UE para permitir financiar uma reindustrialização que garanta que serão empresas europeias – e não as americanas ou chinesas – a fabricar as armas, as tecnologias verdes, os veículos eléctricos e as ferramentas de alta tecnologia do futuro. O antigo primeiro-ministro italiano recomenda ainda a consolidação dos mercados de energia, das telecomunicações e financeiro em toda a UE.
Mas se soubermos ler por entre as linhas, quando se apela à consolidação e integração não é apenas de reindustrialização e competitividade que estamos a falar. O preço a pagar para aumentar a nossa autonomia é, para Letta, precisamente, um novo dirigismo económico e o fim da política de concorrência tal como a conhecíamos. A ideia é agora a da criação (artificial) de aglomerados gigantescos europeus, no sector financeiro, das telecomunicações e da energia para podermos rivalizar com os americanos e chineses. Esses super-monopólios são apresentados como a chave de uma nova competitividade. Porém, como bem relembrou Vestager, a ainda Comissária da Concorrência, num desconsolado discurso de despedida, foram precisamente as nossas regras que protegeram “a concorrência no mercado único e, ao fazê-lo, mant[iveram] os mercados justos e abertos ao escrutínio”. Ou seja, nome da nossa autonomia estratégica, parecemos agora dispostos a esquecer os controlos que até aqui aplicámos a fusões e aquisições, bem como a aliviar as regras de auxílios de Estado, sem levar em consideração as consequências que podem advir deste abandono dos tais princípios fundacionais que nos trouxeram prosperidade e liberdade económica.
Também Mario Draghi está a preparar um relatório para impulsionar as indústrias e a competitividade da União e as suas recomendações deverão ser apresentadas em Junho. Porém, Draghi já fez saber que é preciso “uma União Europeia adaptada ao mundo de hoje e de amanhã” e que o que irá propor “é uma mudança radical”.
Em suma, todas estas mudanças, mais ou menos radicais, implicam o abandono do paradigma fundador da Europa das Liberdades. Agora, no seu lugar, surge a Europa da Segurança, focada em garantir autonomia e protecção, que ao invés de assentar no mercado e comércio livres, irá criar um mercado cada vez mais dirigido e um crescente proteccionismo no comércio internacional.
Se olharmos com atenção para todos estes documentos que estão a moldar o futuro, onde há 30 anos a palavra chave seria a liberdade, hoje é a segurança. A preocupação com a reindustrialização tem por base garantir a autonomia estratégica, ou seja, a segurança económica. Na área do digital, mais do que criar incentivos à inovação e promover a concorrência no mercado que levaria a saltos tecnológicos, a preocupação é agora a segurança: a segurança nas redes sociais, a segurança contra a desinformação, a resiliência e segurança das infraestruturas, a redução da dependência de fornecedores de alto risco. Também a nova União de Saúde procura garantir a segurança (possível), procurando melhorar a resiliência e integração dos nossos sistemas de saúde, aumentando as respostas colectivas onde isso signifique mais protecção e criando mecanismos que previnam situações de escassez de medicamentos e substâncias críticas. Até o famoso Green Deal deixa de ser um fim em si mesmo – a transição verde – mas um meio para garantir a segurança económica, a segurança energética e a segurança climática.
Todas as políticas anunciadas, previstas ou intuídas para os próximos 5 anos se desenham para garantir mais segurança, mais resiliência e mais autonomia e todas elas têm como pano de fundo uma enorme necessidade de mais indústria europeia, mais campeões europeus, mais produção europeia, mais matérias primas críticas exploradas e transformadas em solo europeu, mais agricultura europeia, mais controlo e protecção das fronteiras externas da união. Se olharmos para a versão circulada, mas não oficial, da Agenda Estratégica 2024-2029 que será aprovada pelo Conselho Europeu de Junho, encontramos a transposição desta tendência em prioridades.
Numa situação em que os riscos são muitos e em que estamos mais sós do que nunca num mundo de rivais e inimigos o foco na segurança parece ser óbvio. Para além disso, numa nova conjuntura internacional como aquela que se inaugurou com a invasão da Ucrânia, a União Europeia não pode manter a ingenuidade e achar que todos os parceiros são igualmente aceitáveis. Não são e não devem ser. A Rússia e a China não são amigos nem aliados. Serão, na melhor das hipóteses, rivais sistémicos. Temos por isso que reduzir dependências, bem entendido.
No entanto, se é naturalmente necessário o derisking e decoupling de que agora falamos, o reforço da nossa autonomia não se pode fazer à custa das liberdades que ajudaram a construir a União Europeia e o nosso mercado interno. Se a segurança que agora ambicionamos significar um mercado mais fechado, mais dirigido, mais centralizado, mais proteccionista e com menos concorrência, o preço a pagar, no fim do dia, será sempre demasiado alto. E não é por abandonarmos as regras de concorrência que, de repente, vão florescer Googles e Microsofts europeias, muito pelo contrário.
Não podemos querer ser, ao mesmo tempo, a China, com a sua economia dirigida, e os Estados Unidos, com a sua apetência pelo risco e pela inovação. Não podemos entrar na competição dos subsídios, nem do proteccionismo. Os EUA e a China representam dois modelos de crescimento opostos, ambos diametralmente diferentes do nosso.
Na sua competição com os Estados Unidos e com a China, a Europa não pode perder a alma que a fundou. E a alma europeia é precisamente esse equilíbrio intrincado de liberdades, de comércio livre e de concorrência. O objectivo definido de garantir a nossa segurança através de uma base industrial forte e competitiva num mercado global não está de todo errado, mas o caminho para o atingir pode, e deve, ser outro: precisamente o de olhar para trás e compreender que foram os valores de liberdade que sempre nos trouxeram, não apenas a prosperidade, mas, junto com esta última, também a segurança – e nunca o seu contrário.
Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.