O exercício de funções públicas, sobretudo autárquicas, não deveria, no meu entendimento, ter condicionamentos geográficos quanto à naturalidade de quem as exerce. Nunca esta questão se me tinha posto nas várias eleições autárquicas em que participei ativa ou passivamente. Mas, atualmente, não consigo deixar de pensar que esta dimensão possa fazer toda a diferença no modo como um eleito autárquico, em particular, pode desempenhar o seu mandato e condicionar os destinos de uma cidade de forma marcante.
Esta reflexão não pretende ser argumento para uma discussão entre o Norte e o Sul, ou entre alfacinhas e tripeiros, ou o mote para um discurso inflamado contra os elementos externos a uma determinada comunidade geográfica. Nem tão-pouco uma crítica generalizada a todos os que se identifiquem parcialmente com esta questão; pelo contrário, trata-se de uma reflexão que tem a sua origem numa pulsão forte e interessada em compreender o que se está a passar em Lisboa e como, silenciosamente, nos deparamos com o estado de sítio a que estamos votados, no curto, médio e longo prazo.
Não existe memória de uma Lisboa esventrada e escalpelizada como a que temos nos dias de hoje (talvez só após o terramoto de 1755!). Em qualquer sítio para onde nos viremos encontramos barreiras vermelhas e brancas alinhadas desordenadamente, montinhos de areia ou terra, escavações em nada arqueológicas, pedras amontoadas, caminhos pedonais ladeados por uma rede metálica, escavadoras de todos os tamanhos, pó, estradas redesenhadas a amarelo com tabuletas a condizer a indicarem os desvios ou caminhos alternativos, ruas cortadas, outras condicionadas, enfim, uma parafernália que confunde qualquer um de nós, todos os dias.
A questão que se impõe é a seguinte: como chegámos até este caos pulverizado por toda a cidade? Estaria a nossa Lisboa assim tão necessitada de todas estas intervenções (e tudo ao mesmo tempo)? De uma requalificação que lhe desse uma cara nova? De uma operação plástica em tantos sítios e com a mesma urgência?
Tudo isto leva-me a uma segunda reflexão. Estaremos nós, lisboetas que aqui nascemos, crescemos ou escolhemos esta cidade com o coração e a razão, saturados e assim tão queixosos desta cidade, capital de Portugal? Teremos deixado transparecer este desagrado de tal forma que pode ter sido interpretado como desamor e como desinteresse? Se sim, então deveríamos estar satisfeitos por, finalmente, alguém ter tido este arrojo, esta coragem de pôr tudo em ordem. Mas não. Não vejo entusiasmo com as obras que grassam pela cidade, seja no Eixo Central, no Cais do Sodré, no Areeiro, no Campo das Cebolas, em Campolide e sei mais lá onde! Mas senti um ânimo coletivo positivo e de um contido alívio pela anulação das obras na 2ª Circular…
Andamos deprimidos porque demoramos horas a atravessar a cidade e ainda nem sequer começou a época das chuvas. E as inevitáveis inundações! Tentamos “fugir” por um outro qualquer percurso e deparamo-nos com mais obras, não havendo, afinal, fuga possível. Sentimo-nos cercados, com a desordem instalada ao virar de cada esquina. Custa-me ver a minha cidade assim, porque gosto dela mesmo com todas as suas fragilidades e não consigo perceber por que razão tenho de passar por tudo isto, quando o resultado não vai ser positivo, nem sequer valendo o esforço que cada um faz para se deslocar na sua vida quotidiana.
E assim chego onde comecei. Uma perspetiva sentimental. Mas não são os sentimentos que determinam muito do que fazemos, do quanto de nós pomos nas nossas tarefas, o móbil do nosso dia-a-dia?
Questiono, pois, a afeição por Lisboa de quem a lançou nesta epopeia. E interrogo-me se faria o mesmo à cidade que o viu nascer. Se sujeitaria os seus conterrâneos a esta desordem hemorrágica desenfreada que surge por todo o lado.
Não sou “sulista, elitista, nem liberal”, até porque as minhas raízes acima do Douro o comprovam, mas, neste caso, não consigo evitar a dúvida. Se estaremos perante alguém que não sente suficientemente Lisboa para ser o seu líder, alguém que parece não respeitar os lisboetas, não compreendendo que tudo tem uma dimensão determinada pela razoabilidade. Ao invés, somos espectadores de uma longa-metragem marcada por uma vontade própria que se sobrepôs aos interesses da cidade e dos lisboetas, num contrarrelógio imparável que só terminará – vá-se lá saber porquê! – em outubro de 2017. Até lá, a cidade devia estar encerrada para obras.
Vereadora substituta do PSD na Câmara Municipal de Lisboa