Os dias, atrás uns dos outros, seguem-se num calendário de parede e, ciclicamente, há um tema que se repete. Quem observa, em grupo, o calendário, de pé e de olhos quase entornados em derrame dos números que ainda resistem a marcar os dias, afasta-se, de palma da mão em vassoura de suor na testa, porque, na verdade, trata-se de um tema que toda a gente, efectivamente, conhece. “Se quisessem, podiam mudar facilmente isso”, desabafa o primeiro que ao longe já se atira, enquanto, nos olhos pardos daqueles que demoram mais alguns segundos a desistir, é notada uma sensação de pouca novidade. Chatice, banalidade e fastio são os degraus subidos por quem tem a rara esperança de ainda sempre encontrar uma varanda interior, perdida numa realidade com pouca vontade em ser definitivamente aquilo que nunca conseguiu ser: real. Fala-se em tiros, em roubos, em tráfico, fala-se, enfim, numa espécie de faroeste crescente que no Meu País, antes, só existiu em filmes.

O meu País, que é velhinho e às vezes até estranho, preocupa-me cada vez mais, mas apaixona-me muitíssimo. O tema que o calendário dita, pode admitir-se, é este: insegurança. O que significa? Todos terão o seu justo palpite, mas, por certo, ninguém refutará este significado: desconforto em ser. E o mais engraçado, nunca passando por um aumento de proibições severas e controlo alheio, é que a solução da insegurança reside, tão só, no centro da sua própria definição: no Ser. O que é isto do Ser? Com respeito, crê-se que o Ser, neste momento, possa ser aquilo que cerca o Leitor: esta experiência consequente da invasão de um campo composto de visão, com miras apontadas a reacções emocionais do invadido. O Ser é vasto e complexo, mas o que importa, por agora, é a relação do Ser com a insegurança discutida. Há uns dias, numa das ruas do Meu País, o Sr. Américo fugia de uma quase inevitável paragem cardiorrespiratória, enquanto rasgava as cordas vocais com gritos esbaforidos que clamavam, em repetição, “isso já é maldade!”. E tudo porque, tranquilamente, ao sair de madrugada para o emprego, perguntou a um homem de meia-idade o motivo pelo qual, este, buzinava dia após dia às 6h da manhã e o barulhento decidiu, logo, sair do carro e começar a soar uma buzina de mão afirmando com os punhos “eu sou livre de buzinar, seu velho!”. Pobre Américo, que, perseguido aos gritos, correu Lisboa inteira, de pulmões nos pés, a fugir de uma realidade que lá está: é irreal.

A existência actual parece esquisita e, talvez em produto dos individualismos que deificaram a primeira pessoa do singular, o antigo anormal parece ser o novo normal impreterível. Noutro dia, uma senhora indefinida, insistia em tentar, à quinquagésima nona tentativa, captar uma selfie perfeita em plena passadeira com um Tejo de trânsito à sua frente, quando, um transeunte, lhe disse “os carros querem passar, pá!” e, a senhora, de cabelos levantados em safanão de dedos rápidos, respondeu assim: “se eu esperei nove meses para nascer, eles podem esperar que eu mande uma fotografia gira ao meu amorzinho lindo”.

O que se passa, afinal? A liberdade pode ser muita coisa, mas isto não é definitivamente. Aliás, é manifesto o que estes comportamentos são: o epicentro de onde começa o desmoronar da segurança em sociedade. A falta de conforto em ser afirma-se, precisamente, a partir do momento em que a prioridade da existência se assume enquanto mero saciar momentâneo de prazerosos caprichos cobiçados e impostos por sujeitos sempre estrangeiros à vida. “Mas eu sou livre de fazer o que bem me apetecer”, ouve-se um terceiro tipo de uma terceira história que se terceiriza em respeito à imaginada pouca paz do Leitor. O que se quer dizer é que a plenitude do Ser é aquilo que vai determinar a exacta segurança de todos a existir em sociedade. A criminalidade existe, assusta e deve ser tanto acompanhada, como entendida, como, mesmo, descompensada. Contudo, o combate do desconforto em ser, que faz de quem nos rodeia – e nós também! – uma ameaça imprevisível ao invés de uma mais-valia útil à existência humana em progresso, é de dificílima abordagem uma vez que, por não-ilícito, quando discutido, aparenta ser uma imposição de comportamentos a quem nada de mal fez e simplesmente decidiu ser como só podia ter sido. Ainda assim, se a apatia e a mera indignação de corredor for a única reacção quanto ao reinar da bizarrice anormal, que leva a uma vida de exclusivos prazeres desenfreados a troco de um imperial desfragmentar humano, a insegurança continuará a aumentar a níveis de gravidade bem para lá dos da criminalidade só violenta e só armada. Num horizonte de normalização quanto àquilo que normal nunca foi, a insegurança passará a ser, totalmente, do próprio “Eu” em si mesmo, de frente com os outros “Eus” nunca nós, dando azo, inevitavelmente, a populações rodeadas de isolamento acompanhado, medos violentamente inofensivos e destinos de algibeiras para sempre rotas.

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