A nossa vida mudou radicalmente nos últimos dias. E, à medida que os esforços para conter o novo coronavírus aumentarem, é provável que mude ainda mais.
Mas não adianta pensar que tudo voltará ao normal após a contenção da pandemia.
Vamos necessariamente sair diferentes deste momento. E essa é uma oportunidade que não podemos deixar de agarrar com todas as forças.
Talvez pareça insensível e desadequado pensar num futuro que a todos nos parece, neste momento, muito distante. As nossas atenções devem estar voltadas exclusivamente na proteção da vida, seja por via da prevenção massiva e contenção da epidemia, seja por via do reforço dos recursos disponíveis para o tratamento em larga escala. Quando o hoje está ameaçado, não adianta pensar sequer no amanhã.
Mas permitam-me discordar.
Este é um momento decisivo nas nossas vidas. O mundo vai mesmo mudar, de forma substancial, e cumpre-nos agora – e não amanhã – sonhar e construir o nosso novo normal.
Tal como em 1941, quando, em pleno momento crítico da 2.ª Guerra Mundial, Churchill e Roosevelt assinaram a Carta do Atlântico, criando os alicerces para o mundo do pós-guerra, precisamos hoje de uma nova visão para o mundo que queremos ser.
Este pode e deve ser um momento fundacional para uma nova ordem mundial.
O momento para reinventar umas Nações Unidas estranguladas ainda por mecanismos herdados da Guerra Fria. O momento para refundar o projeto europeu, libertando-o da tecnocracia acrítica que o tem manietado. O momento para reformar o Estado português, condicionado por uma máquina pesada e inamovível, que o impede de garantir as suas funções essenciais.
Este pode ser o momento para nos libertarmos das dicotomias protecionismo/livre-comércio e nacionalismo/globalização. O momento para repensarmos o modelo político e económico predominante, desenvolvendo um capitalismo de impacto, que reduza as insuficiências atuais do modelo de democracia liberal.
Este pode ser o momento para nos focarmos nos verdadeiros problemas globais, para trabalharmos para o desenvolvimento sustentável e pensarmos de que forma resolvemos a equação entre crescimento económico, justiça social e proteção e regeneração ambiental. O momento em que a solidariedade intergeracional que hoje, no contexto atual do novo coronavírus, é pedida aos mais novos, possa ser-lhes devolvida mais tarde, deixando-lhes um planeta mais protegido.
Mas, ao contrário do que aconteceu no passado, a criação deste novo normal não será uma tarefa apenas para as elites. Temos hoje a população mais qualificada da História. Temos conhecimento científico sem precedentes e tecnologia capaz de acelerar qualquer solução. E temos hoje, todos nós, uma voz. Somos capazes de nos fazermos escutar e somos capazes de nos organizarmos, enquanto sociedade civil, para atingirmos o bem comum (o caso do movimento Tech4Covid19, em Portugal, é o mais bonito exemplo).
Ao longo das últimas semanas temos assistido às análises sobre a disrupção que o coronavírus trouxe à forma como trabalhamos, como aprendemos, como viajamos, como socializamos, como consumimos, como vivemos, como amamos. Mudanças relevantes que, neste momento em que estamos, talvez constituam a maior experiência social alguma vez empreendida. Mas, em boa verdade, nenhuma destas disrupções, nenhuma destas mudanças será verdadeiramente significativa se não for acompanhada de novos paradigmas de desenvolvimento e crescimento económico sustentável ou de novos modelos institucionais focados no potencial humano.
No ensaio que publicou no Financial Times, no passado dia 20 de março, Yuval Noah Harari alerta para a importância das decisões tomadas agora, neste contexto de crise humanitária global. Essas decisões definir-nos-ão, enquanto geração.
Apesar de tudo o que tem que ser feito agora, tenhamos nós ainda a capacidade de sonhar o depois. Tenhamos nós a capacidade de construir um novo normal, melhor do que aquele que tínhamos há poucas semanas.