Alberto Gonçalves, que há muitos anos vergasta políticos, costumes e tendências neste jornal (e antes deste em outros) semanalmente, e diariamente na Rádio Observador, fez há dias 55 anos. E a vasta corte admirativa que o segue (da qual faço, fielmente, parte) deve ter visto com agrado o texto que aqui publicou sobre aquela efeméride porque às vezes sabe bem esquecermos o mundo oficial, os rituais do poder e o wokismo que anda no ar. Irónico, à sua inconfundível maneira, mas um tanto melancólico – diz a certo ponto que “oficial, oficiosa e civilmente, sou um velhote”.
Ahem, devo ser um Matusalém. Porque, no ano em que ele nasceu, fui pela primeira vez ao Algarve e, como já tinha carta de condução tirada de fresco e um amigo havia herdado um Renault Joaninha de um avô e tinha licença de aprendizagem, encartei-o, como se dizia.
Saímos às 22H00 do Porto e chegámos a Lagos, com destino ao parque de campismo local, às 11H00 da manhã. Autoestradas nem vê-las, cafés abertos depois da meia-noite um achado, e trânsito escasso. Viagem memorável, já se vê, da qual nem ele nem eu retivemos (como aconteceria hoje) a interminável maçada, mas o encanto da descoberta e a expectativa da praia, das Inglesas, das comidas e da aventura.
Aventuras houve algumas, todas banais para dois moços com automóvel (ainda que um vetusto charêlo), algum dinheiro no bolso e relativamente bem apessoados (mais ele, que eu tinha de compensar com palavreado e alguma fluência em Inglês a natureza relativamente anódina da minha pessoa).
Sucedeu que em determinada altura fomos, da Senhora da Rocha onde visitáramos uns amigos, jantar com eles a Alcantarilha. Um excesso de libações (a cerveja era fresquíssima, a companhia agradável, o conduto mais do que satisfatório e a sede insaciável) levou a que regressássemos com alguma euforia. E foi esta que induziu o meu amigo a tratar o velho Renault com alguma desenvoltura, tanta que a certo ponto, numa curva mais apertada já à chegada ao destino, eu, o encartador, o informei fleumaticamente que nunca mais “desenharia” aquela curva. Não desenhou, de facto, e pelo contrário fomo-nos espatifar de frente contra um muro daqueles algarvios, que se esboroou.
Saímos os dois, atordoados, e saíram também os visitados, que nos seguiam (num Ford Mustang, que é para as pessoas que sabem destas coisas perceberem que eram pessoas de representação). Parece que nestes entretantos caí redondo no chão, perante a comoção geral, sangrando da testa, que já na altura era larga, desimpedida e franca. E como um médico conhecido na minha longínqua cidade estivesse de férias em Lagoa, não longe, foi para lá que me levaram. O médico examinou o ferido, que entretanto tinha recuperado os seus espíritos, e declarou que aquilo não era nada, apenas tinha de coser. Fomos portanto todos ao hospital local (ou clínica, ou enfermaria, ou lá o que era), aberto naquela instância de propósito para acolher o forasteiro. Lembro-me que a enfermeira, chamada de seu sossego para a intervenção, cozeu os instrumentos e o fio numa panela; e que apresentou o resultado no respectivo testo, virado ao contrário, o que me pareceu um procedimento altamente heterodoxo. O médico (uma jóia de pessoa, que já morreu) apenas resmungou que aquele fio (chamou-lhe outro nome, não me lembro) era demasiado grosso, pelo que iria ficar com uma cicatriz. Fiquei efectivamente, discretíssima e que acabou por desaparecer ao cabo de muitos anos, conferindo-me inclusive, enquanto durou, alguma personalidade.
E então, esta historieta tem moral? Poderia ter, se me lançasse num comovente exórdio da desgraça daqueles tempos pregressos contrastada com as maravilhas do presente. O que temperaria com a reflexão de que então o país crescia economicamente a velocidade vertiginosa, o que nunca mais voltou a suceder; que, mais de 50 anos volvidos, qualquer comparação resulta sempre, em muitos aspectos, vantajosa para o presente, em Portugal ou em qualquer parte do mundo, porque entretanto o progresso científico e tecnológico, mais a acumulação de riqueza, melhoraram a vida das pessoas.
Isto diria, mas concluiria que eu, o meu amigo e todos os moços da nossa idade que conhecíamos tinham justificada esperança de um futuro de muito, ou algum, sucesso em Portugal.
Hoje não têm. E com isto poderia abundar em considerações pessimistas, amarrando ao pelourinho da descrença a forma como o nosso país tem sido conduzido.
Se estivesse virado para grandes empolgações retóricas, aproveitava a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos (jogos em que se celebra a paz ou, ao menos, a trégua nas guerras) para verberar o progresso tonto dos costumes: as religiões cristãs, os seus ícones e a sua história fazem, pelo menos desde os tempos de Monty Python, bons temas de comédia. A qual tem lugar em comédias, não tribunais, igrejas ou recintos desportivos quando tenham o significado multinacional que os afectos a estes Jogos têm, por exemplo. Com uma pilhéria desgraciosa e cobarde, além do mais, porque os mesmos conspícuos guionistas que resolveram inspirar-se na última Ceia para fazer uma representação da “comunidade” LBGTurbo nunca ousariam uma rábula semelhante com temas do Islão, para não porem em risco os pescoços que lhes seguram as estúpidas, e hipócritas, cabeças. E, estando com a mão na massa, também guardaria uma palavrinha para a imagem de Maria Antonieta exibindo pormenorizadamente o seu pescoço decepado e segurando a cabeça junto ao ventre; ou a galeria das mulheres célebres que exclui Joana d’Arc, assim como entre os franceses ilustres Luís XIV, Napoleão ou de Gaulle. Isto e muito mais é, parece, a admirável França woke dos nossos tempos, à qual dá vontade de dizer, como Jack Nicholson numa tirada célebre: sell crazy someplace else, we are all stocked up here.
Mas não vou por aí, que o tempo é de férias e vou mazé para o Algarve, lá mais para o final do mês.
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