A eutanásia coloca-nos, individualmente mas também enquanto membros de uma comunidade política, perante questões fundamentais: a natureza da liberdade e da autonomia; os fundamentos da dignidade humana; a doença e o sofrimento; a vida e a morte; a esperança e o desespero.

É, por isso mesmo, um tema que levanta profundos dilemas morais, e que tende a suscitar mais dúvidas do que certezas. Caso a lei 22/2023 seja regulamentada, a nossa resposta, enquanto comunidade, será dada na forma da aceitação não apenas jurídica, mas também ética, política e cultural, da eutanásia em determinadas circunstâncias.

A questão é particularmente delicada porque expõe condições que, sendo inevitáveis e comuns a todos, suscitam em nós um enorme pudor: o encontro com a doença, o sofrimento, e, ao limite, os próprios limites da nossa condição humana. A dificuldade em pensar e pronunciarmo-nos sobre o tema reflete a ideia de que não nos cabe, não cabe a cada um de nós, determinar ou limitar as respostas aceitáveis para situações limite, que não experimentámos. E também a dificuldade que temos, enquanto filhos da (pós)modernidade, das revoluções, de tempos de aceleradíssimo progresso científico e tecnológico, em aceitar a vulnerabilidade, o envelhecimento, ou o sofrimento como traços que (também) fazem parte da nossa condição. Dificuldade que torna tentadora a possibilidade de fazer da morte um procedimento médico, determinado pela vontade individual, e passível de ser monitorizado e burocratizado.

Mas a lei em questão traz consigo três riscos que, individualmente e como membros de uma comunidade, não devemos ignorar.

Em primeiro lugar, traz implícito um novo entendimento do conceito de dignidade humana. Em determinadas circunstâncias, e no espírito que anima a lei, é apresentada como condição para uma morte digna a possibilidade de que esta aconteça como manifestação da minha vontade individual. Ora, como alguém aqui escreveu (num dos mais sérios e ponderados textos que li sobre o tema):

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“A dignidade humana é inerente à pessoa. Deve ser invocada para defender e respeitar a pessoa enquanto tal e a vida em si mesma. Saber viver, ou morrer, com dignidade não é um sucedâneo óbvio ou imediato, mas uma questão de consistência com os valores que partilhamos. Não se perde a dignidade pelos infortúnios que a vida nos possa trazer nem se resgata dignidade simplesmente por não aceitar ou desejar viver uma vida que possa parecer ter perdido o sentido de ser vivida. Parece-me mesmo que há algo de perverso em se poder usar o conceito de dignidade humana para executar um regime público que ajuda a pôr fim à vida.”

Um segundo aspeto prende-se com o outro lado da moeda. É que da ideia de que, em determinadas circunstâncias, existe um direito a morrer, decorre necessariamente a ideia de que, nessas mesmas circunstâncias, existe um dever de matar. Na verdade, a autonomia individual, na eutanásia, tem uma dimensão paradoxal: há um outro, que não eu, que terá de ser também autor desse ato de matar que eu não posso, ou não quero, realizar autonomamente. Colocar-se-á aqui, naturalmente, a questão da objeção de consciência. E podemos e devemos antecipar conflitos, como já se verificam na questão do aborto, havendo quem aponte a objeção de consciência como um entrave que deve ser, por isso, objeto de regulamentação. Ora é da razão e da consciência que resulta a capacidade de fazer escolhas morais e livres, e por isso mesmo elas constituem-se como fundamentos da dignidade humana.

Existe, finalmente, outro fenómeno que deve ser tido em conta, que é o da rampa deslizante. Por um lado, este tipo de leis, uma vez em vigor, são muito difíceis de reverter. Por outro, sendo inicialmente justificadas como resposta a casos excecionais, elas tendem a ampliar o princípio (a morte a pedido) e os critérios legais de forma rápida, e que as vai distanciando cada vez mais do senso moral comum.

A eutanásia apenas é legal em oito países, e em alguns estados australianos. Mas os casos e as estatísticas que nos chegam evidenciam bem o perigo da rampa deslizante. Perigo que decorre, desde logo, da difícil definição (e contenção) de conceitos que são tidos como essencialmente contestáveis, como o conceito de “sofrimento”. Há quem defenda uma conceção de sofrimento que não implica necessariamente dor física (cada vez mais passível de ser aliviada mediante o acesso a cuidados paliativos), mas apenas uma dimensão psíquica, resultante de condições psicológicas. Em Espanha, onde a eutanásia foi despenalizada e regulamentada, debate-se a inclusão da doença mental como critério.

E considere-se o caso da pioneira Holanda, onde a eutanásia entrou em vigor em 2002. Desde então, o direito à eutanásia foi ampliado para incluir crianças que sofram de doença grave e incurável, e pacientes com demência grave que tenham manifestado essa intenção quando mentalmente capazes. Também aqui se abrem as portas para o sofrimento decorrente de factores psíquicos. Zoraya ter Beek, uma jovem de 29 anos que sofria com depressão, morreu em maio, depois de ver aceite o seu pedido para aceder à eutanásia.

A rampa deslizante pode ainda abrir caminho para um outro efeito perverso, que é o aumento da vulnerabilidade das pessoas mais velhas, confrontadas com a possibilidade de escolher morrer. No filme Plano 75, de 2022, Chie Hayakawa explora uma realidade distópica: para lidar com os desafios de uma população muito envelhecida (neste momento, 40 por cento da população japonesa tem mais de 60 anos) o governo japonês decide criar um programa que oferece a eutanásia a todos os cidadãos com 75 anos ou mais. Dirão que estamos no domínio da ficção, mas Hayakawa prefere descrever o filme como um drama humano, longe de ser impossível numa sociedade que tem cada vez mais dificuldade em encaixar os mais vulneráveis.

E da ficção para a realidade chegamos à Bélgica, onde Luc Van Gorp, presidente da Mutualité Chrétienne (uma das maiores seguradoras do país), defendeu que mesmo na ausência de sofrimento intolerável, e mesmo com acesso a cuidados de qualidade, as pessoas devem poder ver reconhecido (e materializado) o direito de terminar as suas vidas. Mas como disse Sammy Mahdi, do Partido Democrata Cristão flamengo, quando alguém está farto da vida e se sente um fardo, não quererá dizer que estamos a falhar como sociedade? A atomização da sociedade e o enfraquecimento das noções de comunidade, muitas vezes apresentados como sinal de emancipação individual, têm levado a uma sociedade de indivíduos cada vez mais sós. O resultado é uma pandemia silenciosa, que levou algumas autoridades a decretar a solidão como “crise de saúde pública.”

Num (impressionante) artigo na Spectator, Mathew Hall conta a sua experiência acompanhando a tia, uma cidadã canadiana, no seu processo de “morte medicamente assistida”. Processo que Hall, embora sendo um firme opositor, descreve como sedutor. E termina numa alusão à subtileza do mal: quando removemos fronteiras tidas como sagradas, ele pode tornar-se um lugar-comum.

Subscrevi o Manifesto Vida 2030 porque, admitindo que houve uma maioria parlamentar (entretanto terminada) que aprovou a lei, e reconhecendo os argumentos de quem pede a sua regulamentação, entendo que esta questão não deve ser tida como encerrada, e que estas fronteiras não podem ser removidas. Subscrevi-o em nome de um princípio de prudência, em defesa de um conceito de dignidade e de liberdade que sejam reflexo do valor da vida humana em todas as suas circunstâncias, e em sinal do tipo de comunidade onde desejo viver e, um dia, também morrer.