“Eusébio do Sporting”. A alcunha foi-lhe oferecida por Carlos Pinhão, um histórico jornalista do jornal A Bola. Provavelmente dará, permitam-nos a ligeireza, alguma comichão aos sportinguistas, que prefeririam dizer em jeito de brincadeira que o “King” era o “Damas do ataque”. Vítor Damas, um guarda-redes que misturava elegância e elasticidade, ganhou fama em Alvalade e disputou o Campeonato do Mundo no México com 38 anos. Trinta e oito. Mais 18 do que Paulo Futre, o benjamim da seleção. Quando damos conta de que Ricardo Costa, o central do Valência, será o velhote da seleção de Paulo Bento na Copa do Mundo, decidimos lembrar o mais velho de sempre.

Reza a história que Damas chegou ao Sporting com apenas 14 anos, pela mão de um vizinho que jogava ténis de mesa no clube. Da inocente juventude à elevação a mito e histórico leão não tardaria muito. Aos 19 chegou à equipa principal (1967) e bastariam dois anos para merecer o Prémio Stromp na categoria de atleta do ano. A baliza era e seria o seu habitat natural por muitos anos, tantos que se tornaria no jogador do Sporting com mais jogos pelo clube: 444.

A sua história e legado são enormes. Os dois Campeonatos Nacionais (1969/70, 1973/74) e as três Taças de Portugal (1970/71, 1972/73, 1973/74) conquistados são apenas uma parte. Na memória de muitos ficaram também os duelos com Eusébio, a grande figura do rival da cidade. Há um lance que os une. Foi num dérbi em 1969/70. A bola pingava na área do Sporting e Damas começara a avançar para ela. Eusébio, felino, antecipou-se ao defesa e cabeceou por cima do guarda-redes. Seria golo, era um chapéu perfeito… Mas não. As lendas nascem daquelas defesas que, após um golo, os comentadores teimosamente dizem “não havia nada a fazer”. Para guarda-redes como Damas havia sempre algo a fazer. E, mesmo em contra pé, lá recuou e conseguiu sacudir para canto. “Permitiu que ganhássemos por 1-0 e conquistássemos o título de campeões nacionais. Para mim o mais importante não foi só a defesa; graças a esse lance conseguimos o título nacional, o meu primeiro”, lembrou numa entrevista para o livro “Álbum de memórias – Estádio José Alvalade 1956-2003”.

“Foi no campo do Sporting esse jogo. O Damas fez a melhor defesa… aliás ele até concordou comigo, fez a melhor defesa da vida dele. Nunca vi, nunca tinha visto um guarda-redes assim, com um golpe de rins assim. Enquanto eu já estou a levantar os braços a gritar golo, ele no ar conseguiu com a ponta dos dedos tirar o golo”, disse Eusébio numa entrevista para a RTP. “Esta é a defesa que considero a defesa mais difícil de executar para um guarda-redes”, afirmou Damas no mesmo programa. Veja aqui a reação de ambos.

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Em 1986 foi um dos eleitos por José Torres para disputar o Mundial do México. O número um era Manuel Bento, um homem que defendeu as redes da Luz entre 1972 e 1992. A primeira partida da fase de grupos foi contra a Inglaterra de Peter Shilton, Bryan Robson e Gary Lineker. Carlos Manuel vestiria a pele de herói e marcaria o golo da vitória. A baliza de Bento ficou imaculada. Num dos treinos seguintes, o guarda-redes do Benfica acabaria por se lesionar com gravidade. Era tempo de Damas entrar em ação. Reforçamos: aos 38 anos de idade. No entanto, duas derrotas com Polónia (0-1) e Marrocos (1-3) ditariam o fim da participação lusa. Era um ponto final no conto de fadas tardio de Damas.

Uma década antes, com uma defesa de outro mundo, Damas havia roubado o apuramento da Inglaterra para o Europeu-1976, na Jugoslávia. O Grupo 1 acabou por ser liderado pela Checoslováquia de Panenka, a seleção que acabaria por vencer o Euro-76 na final contra a Alemanha (5-3 em penáltis). Recorde aqui. Houve quem a comparasse com a defesa épica de Gordon Banks a cabeceamento de Pelé no Campeonato do Mundo de 1970, tida por muitos como a melhor defesa de sempre.

MEMÓRIAS

“O Vítor foi um grande guarda-redes do Sporting. Apareceu muito miúdo, foi meu suplente, e agarrou o lugar durante uma lesão que tive, já no final da minha carreira. Esteve no Sporting até ao dia que pôde. Foi uma pena ter-nos deixado tão cedo. Era um óptimo companheiro de equipa e um grande amigo, amigo dos seus amigos. Deixa muitas saudades!”, lembrou Carvalho, o guarda-redes leonino entre 1959 e 1970, num artigo publicado em outubro de 2012 no site oficial do clube de Alvalade.

“Foi um verdadeiro amigo e colega. Vivíamos perto, eu em Carcavelos e ele na Parede. Encontrávamo-nos muitas vezes. Tínhamos uma amizade muito para além do futebol. Era um excelente homem, muito solidário e com uma visão interessante sobre a vida. Lamento que nos tenha deixado tão novo. Mando um enorme abraço a toda a família.” Foram estas as palavras de Béla Katzirz, mais um ex-guarda-redes do Sporting (1983-1985) — artigo publicado no mesmo local e mesma data.

“Lembro-me do Vítor Damas dos tempos em que ele jogava futebol de salão num clube chamado Neptunos, na velha sede do Sporting, na Rua do Passadiço. Era uma equipa de sub-12 e ele já na altura mostrava grande qualidade. Depois, o Damas fez parte de uma das mais brilhantes equipas de júniores da história do Sporting. O Vítor era 10 anos mais novo do que eu e estreou-se na equipa principal na altura em que eu acabei a carreira. Travámos um conhecimento mais profundo quando ele foi membro de diversas equipas técnicas do Sporting e principalmente quando treinámos o Lourinhanense, quando este clube foi satélite do Sporting. Poucas pessoas o conheciam bem, mas posso dizer que ele tinha grande carácter e fervia em pouca água. Era amigo do seu amigo e um dos mais brilhantes guarda-redes que vi. E a grande ambição dele era jogar como avançado, fazia-o frequentemente nos treinos!” Palavras de Fernando Mendes, um antigo jogador do Sporting entre 1956 e 1968 — artigo publicado no mesmo local e mesma data.

Na hora do adeus, a 10 de setembro de 2003, Eusébio emocionou-se e desfez-se em elogios ao seu rival de grandes batalhas: “O Vítor Damas foi um grande homem do futebol e do desporto nacional, e também um grande amigo. Fiquei muito triste quando soube a notícia, pois tínhamos uma relação de grande amizade, mesmo a nível familiar. Foi um grande homem, dentro e fora dos relvados.”

OS MAIS EXPERIENTES EM MUNDIAIS

Em 1966, José Pereira, um guarda-redes que fez grande parte da sua carreira no Belenenses (1952-1967), atuou de início nas vitórias contra a Bulgária (3-0) e Brasil (3-1). Na jornada inaugural, na vitória contra a Hungria de Flórián Albert, o guarda-redes titular foi Carvalho, o tal a que Damas sucederia no Sporting — Pereira tinha 34 anos.

Em 2002, o mais experiente foi, curiosamente, Paulo Bento, o atual selecionador nacional. O médio defensivo então no Sporting tinha 32 anos e esteve nos três jogos (201 minutos) da fase de grupos, naquele que foi um Mundial de má memória para os portugueses. Portugal ficou pelo caminho num grupo com Estados Unidos (2-3), Polónia (4-0) e Coreia do Sul (0-1).

Quatro anos depois, foi Luís Figo. Se a sua liderança e estatuto eram há muito naturais, a idade trouxe-lhe ainda mais peso. Mas, admitamos, ninguém diria que tinha 33 anos depois daquela arrancada contra a seleção angolana na primeira jornada da fase de grupos, que culminaria no golo de Pauleta (1-0).

Deco foi o mais velho em 2010. Aos 32 anos, atuou apenas 62 minutos no Mundial da África do Sul, depois de se ter lesionado e falhado as partidas com Coreia do Norte (7-0), Brasil (0-0) e Espanha (0-1) — esta última nos oitavos-de-final.