O dia, para variar, estava soalheiro. É sábado, a tarde vai a meio e o almoço de Derek Rabelo no fim. “Obrigado por terem vindo”, diz, apressado, enquanto larga os talheres, aponta o ouvido ao jornalista e estica um braço para trás, em busca de cumprimentar quem os olhos não viam. Nem podiam ver. Derek é brasileiro, tem 22 anos e não vê porque é cego. Mas, há cinco anos, recebeu “um presente de Deus”. E hoje é surfista.
Deus, fé e Cristo. A conversa com Derek embala no surf, nas ondas, no mar e na sua cegueira, mas a crença e a religião estão lá sempre. É a quem esta lá em cima, aliás, que o brasileiro não se farta de agradecer. Por tudo. Pela “softboard” que, aos 17 anos, recebeu do pai em Guarapari, no Brasil, que o “levou a surfar” e “nunca mais” o fez largar o desporto.
Só não agradece pelo facto de “não ter começado a surfar com um ano de idade”. E também não o faz quando lhe dizem que, naquele dia, estavam bem tímidas as ondas que o mar da praia de Carcavelos faz desmontar sobre a areia.
Mas Derek já agradece por, com apenas meia década de experiência a pôr-se de pé em cima de uma prancha, à boleia de uma onda, ter conhecido Kelly Slater, Joel Parkinson, Damien Hoobgood, Laird Hamilton ou Rob Machado. Todos surfistas, uns mais profissionais que outros — o último, por exemplo, há anos que deixou a competição –, mas que a grande maioria das pessoas que tem no surf um hobbie só consegue ver através da televisão. E foi num ecrã que, no sábado, estreou no Estoril o ‘Beyond Sight’, documentário sobre a história de Derek Rabelo, que serviu de desculpa para o brasileiro vir passar “uma semaninha” a Portugal.
Ser cego, surfista e ter uma vontade cheia. A história de Derek foi tornando-o conhecido. Mas, afinal, como é possível deslizar sobre uma onda, numa prancha, sem nada ver? “A gente tem que estar bem atenta ao que está a acontecer: pessoas na sua frente, você à frente de pessoas. E tenho que estar sempre acompanhado, ter alguém para me avisar se já estou no outside [onde as ondas quebram], se devo furar a onda [passar por baixo, mergulhando a prancha] ou para que lado ela vai quebrar”, explica, com um boné encaixado na cabeça e uns óculos, grandes e brancos, a taparem-lhe os olhos. E, por norma, quem lhe faz companhia de perto é Magno Oliveira, o seu treinador.
Pelo menos nos últimos três anos, desde que se conheceram em Guarapari, onde “não tinham como não” se encontrarem. A cidade, cerca de 480 quilómetros distante do Rio de Janeiro, tem “uma praia muito pequena” e foi uma questão de tempo até se cruzarem. “Ele sabe exatamente o momento em que se deve levantar. Não preciso de o avisar. Só tenho de lhe dizer se a onda quebra para a esquerda ou direita”, conta ao Observador, enquanto olha para as miniaturas de ondas que, naquele dia, a praia de Carcavelos lhes oferece.
Magno tem 30 anos, mas não é surfista e costuma antes estar deitado numa prancha. O brasileiro pratica bodyboard e está em Portugal para a etapa do circuito mundial, que arranca a 23 de setembro, na Praia Grande, em Sintra. E orientar um rapaz cego, dentro de água, “é totalmente diferente de tudo o que conhecemos”, garante. “Se você ensina uma pessoa normal a surfar, ela olha para as condições do mar, toma uma ‘vaca’ [é varrida por uma onda] e fica muito desesperada”, conta, para dizer que Derek “é um cara muito calmo nessas situações”.
E isso, continua, “facilita a aprendizagem, porque se ele passasse o nervosismo”, Magno “ficaria ansioso e com receio de o levar para ondas grandes”. E Derek já surfou algumas. Como os “oito pés” — cerca de dois metros e meio — de onda que já enfrentou no Havai ou no Rio de Janeiro. Medo? Nenhum. “Tenho fé em Deus, e depois é encarar e ir para dentro”, assegura.
O mesmo que tinha planeado, na terça-feira, ir fazer à Nazaré, onde aos ouvidos lhe chegou a reputação de ser terra de ondas grandes. “Todo o esporte tem o seu risco, mas o esporte é saúde. É botar a sua vida na prancha e ir para baixo”, atira. É isso que vai continuar a fazer.