Grande parte do tempo do realizador Filipe Araújo é passado a criar trabalho comercial, de publicidade. “É uma forma de pagar os meus sonhos”, disse em entrevista ao Observador. Um desses sonhos chama-se “A Sétima Vida de Gualdino” e pode ser visto este sábado no Cinema Ideal, em Lisboa, às 18h00, em competição pelos prémios de cinema para filmes sobre arte, do festival Temps D’Images.

É uma das raras oportunidades para ver o documentário que valeu a Filipe Araújo o grande prémio nacional do MUVI Lisboa, cuja primeira edição aconteceu em setembro deste ano. “Nunca me passou pela cabeça ganhar o prémio, achei que ia ganhar o ‘Mudar de Vida‘, por ser um trabalho de sete anos, por ser a obra que é e por ser do José Mário Branco. Fiquei muito feliz por ter ganho neste festival porque tem uma filosofia muito parecida à minha, de ‘do it yourself‘”, disse o realizador, que aos 37 anos tem uma produtora independente com um sócio português, a Blablabla Media. “A falta de meios aguça o engenho”, defende.

“A Sétima Vida de Gualdino” conta a história do baterista português Gualdino Barros, responsável por ter lançado dezenas de jovens inexperientes como Jorge Palma, Bernardo Sassetti ou Dany Silva. Após sofrer um acidente vascular cerebral, tenta recuperar os movimentos, reaprender a tocar bateria, lançar uma última cantora e regressar a Paris, onde chegou a tocar com Nina Simone.

A antestreia do filme aconteceu na Cinemateca, no final de março. A sala estava cheia e foi naquele momento que Gualdino viu o filme pela primeira vez. Filipe estava nervoso. “O Gualdino foi com o seu melhor casaco de diva até aos pés, uns óculos laranja, para ver os amigos, e eu estava com algum receio sobre qual seria a reação dele. Então no final as pessoas estavam a aplaudir e, quando as luzes se acenderam, ele começou a dançar, em jeito de agradecimento”.

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“Quando o conheci, o Gualdino disse que não gostava nada de homenagens, que não fazem sentido homenagens póstumas”.

Estima-se que Gualdino tenha lançado cerca de 500 músicos, ao fazer a ponte entre as academias de música e os palcos. “Penso que ele é o responsável pelo Jorge Palma não ter seguido os estudos em engenharia”, disse o realizador, a sorrir. A irmã de Filipe Araújo é pianista e também foi lançada por Gualdino. Foi assim que músico e realizador se conheceram, em 2005. “Lembro-me de ter ido a um desses primeiros concertos e de reparar naquela figura lingrinhas, a falar muito rouco e a fumar um cigarro atrás do outro”.

E as histórias. Contavam-se as histórias mais mirabolantes sobre Gualdino. Autodidata, nos anos 60 leu Jack Kerouac, autor de Pela Estrada Fora, e decidiu partir num comboio até Paris. Dormiu debaixo da ponte Pont Neuf durante três ou quatro dias. “Quando o conheci não acreditei na maior parte das aventuras surreais que contava. Já foi amarrado a uma linha de comboio, já saltou para um charco com jacarés em Miami, mas depois encontrava gente a confirmar isso. É uma figura que está ali na fronteira entre a realidade e o mito”, contou Filipe Araújo

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O filme começa com animação do ilustrador André Carrilho

Para Gualdino Barros colecionar aventuras “muito contribuiu ter chegado a Paris e, como desenrascado que era, ter conseguido cruzar-se e tocar com quase todas as lendas do jazz”. Incluindo com Nina Simone e Johnny Griffin, quando substituiu o percussionista. “Ele fazia amizade com os porteiros dos bares e as pessoas acabavam por se render”, explicou o realizador.

Quando regressou a Lisboa, ainda nos anos 60, o baterista português começou a ir ao Hot Club e tornou-se um ‘olheiro’. Ia buscar músicos para tocar com ele e apanhava as pessoas que estavam a começar. “Os músicos que o acompanharam descrevem-no como uma escola viva. É uma das poucas referências ainda vivas que vive o jazz à maneira antiga. Ele próprio personifica esse improviso, com um amor incondicional à musica e uma loucura quase inerente”. Não são precisas mais palavras para perceber porque é que Filipe Araújo quis eternizar Gualdino, hoje com 76 anos (embora diga que tem 100, porque já viveu de tudo) num filme, que ainda contou com a participação de Bernardo Sassetti, falecido em 2012.

Filipe já tinha feito um trabalho sobre Gualdino Barros, em 2005, quando era jornalista. Conseguiu mesmo a capa da revista Grande Reportagem. Deixou o jornalismo em 2007, mas o bichinho de contar histórias ficou – basta ver outros dos seus trabalhos, como o documentário “Selvagens: a última Fronteira”, e a curta-metragem “A Aldeia do Viagra”. Quando em 2011 Gualdino sofreu o AVC, o então realizador a tempo inteiro percebeu que podia pegar na história de outra forma, centrá-la agora no caminho que Gualdino tinha pela frente, na recuperação dos movimentos para voltar a sentar-se numa bateria.

Próxima fermata: Roma

Filipe Araújo parece, também ele, ser um poço de histórias. Em 1999, foi estudar para Itália, ao abrigo do programa Erasmus. Naquela altura ainda se trocavam escudos por liras (a moeda única só chegaria no século XXI). É tempo de analisar o presente, olhando para o passado. E, pelo meio, deixar saudosistas todos os que já se mudaram para outro país europeu entre seis meses e um ano.

“O meu próximo documentário vai ser sobre Erasmus, uma road trip pela Europa à procura das pessoas perdidas de há 15 anos que estudaram em Roma. Perceber a Europa e como é que esta gente que se cruzou naquela altura comigo, e que se tornou europeísta por causa do programa Erasmus, vive hoje a Europa”, explicou. A longa-metragem, que Filipe quer “bastante intimista”, vai passar por sete países e será falado em seis línguas para que transmita ao máximo o que o realizador, na altura estudante, sentiu e aprendeu à conta da ferramenta que todos os anos permite a alunos portugueses conhecer uma realidade diferente.