Título: Uma Admiração Pastoril pelo Diabo
Autor: António M. Feijó
Editora: Imprensa Nacional Casa da Moeda
Páginas: 174
Preço: 18,00€

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Apesar de Fernando Pessoa ser hoje um autor conhecido, a tradição crítica à volta da sua obra é, como certas famílias, numerosa e pobre. Existe, bem entendido, um grande trabalho filológico, que é explicado pelo facto de não ser nada evidente como se editam os seus textos. Mas tal como nem todos os que sabem contar sabem ler, assim só os melhores filólogos, que são muito poucos, têm ideias sobre Fernando Pessoa.

Uma medida preferível da qualidade do entendimento crítico de Fernando Pessoa são os livros de crítica que se escreveram sobre ele. Há alguns muito bons artigos, nomeadamente artigos recentes, sobre Pessoa. Mas um livro representa um tipo diferente de compromisso, um esforço não-espasmódico. Temos por isso que distinguir os artigos e as colectâneas de artigos dos livros propriamente ditos. O facto é que sobre Fernando Pessoa não há muitos livros propriamente ditos, e dos que há poucos são bons. Bons, ter-se-ão publicado quatro ou cinco, no máximo: a biografia de Gaspar Simões, de 1950, que envelheceu surpreendentemente bem; Um Fernando Pessoa, de Agostinho da Silva, de 1959, que, dado o resto que Agostinho da Silva escreveu, é um milagre; Fernando Pessoa Revisitado, de 1973, de Eduardo Lourenço, que é aliás o único livro de Eduardo Lourenço; e um quinto livro, de que me possa estar a esquecer neste momento e que incluo por escrúpulo. Publicou-se agora, pelas minhas contas, o melhor – Uma Admiração Pastoril pelo Diabo, de António M. Feijó.

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No entanto, conhecendo como possivelmente mais ninguém os livros bons que se escreveram sobre Fernando Pessoa, António Feijó escreveu um livro completamente diferente deles. Representa justamente um esforço continuado, a que chama “um argumento cumulativo maior,” que não se confunde com uma colectânea de artigos, e mesmo com uma colectânea de artigos muito bons. Embora os sete capítulos do livro sejam a reincarnação de ensaios publicados separadamente, o livro tem a forma completamente unificada característica de um livro no sentido normal do termo. É possível, por isso, que, tirando alguns pormenores (como as maravilhosas notas), já estivesse todo escrito antes de ter sido publicado o primeiro dos seus capítulos. O sumptuoso prefácio de António Feijó ao São Jerónimo de Pascoaes, de 1992, é a sua matriz mais antiga e mais constante.

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António M. Feijó

A relação de António Feijó quer com a melhor tradição crítica pessoana, que admira, quer com as outras, que não, é uma relação de oposição. Nota-se logo no primeiro capítulo. De facto, o livro começa com um ataque a dois dogmas do pessoanismo contemporâneo. Tal como a crítica literária contemporânea, que é sua parente afastada, o pessoanismo contemporâneo é muitas vezes uma forma de cepticismo que se entretem a mostrar que não acredita nada em algumas coisas evidentes. Caracteriza-se por exemplo por não acreditar que Fernando Pessoa tivesse existido, como alguém que se vinga do facto de o talento ou o dinheiro estarem mal distribuídos neste mundo; e os seus dogmas têm a ver com isso. No ataque de António Feijó mostra-se a ligação entre os dois dogmas principais. Compreende um argumento sobre o famoso “dia triunfal”, o dia 8 de Março de 1914, em que Pessoa, numa carta tardia, diz que escreveu mais de quarenta poemas numa cómoda alta; mas o seu verdadeiro alvo é a noção de “impessoalidade.” António Feijó defende que, mesmo que todas as provas existissem de que não houve um dia triunfal (e existem todas as provas de que não houve), a ideia de um dia triunfal, inventada por Pessoa, é essencial para perceber Pessoa. A razão por que tal ideia é essencial encontra-se contida no seu argumento sobre impessoalidade. Pessoa é aquela pessoa que não é possível imaginar sem um dia triunfal, e sem aquilo a que António Feijó chama uma “autoridade plena . . . sobre tudo o que escreveu.” A frase ocorre na contracapa do livro, onde também se cita por antífrase o título de um livro justamente esquecido de Jacinto do Prado Coelho: este livro é um livro sobre “unidade e unidade em Fernando Pessoa.”

Como todos os grandes livros de crítica, o livro de António Feijó foi escrito porque o seu autor reparou numa série de simetrias, de parecenças e de relações. Para o perceber é necessário que se percebam pelo menos algumas. As principais são a relação entre impessoalidade e dia triunfal no Capítulo 1, que já referi; a semelhança entre Caeiro como Pascoaes dos outros heterónimos, e Caeiro como destruidor do Orpheu nos Capítulos 2 e 3 (a danação da memória daquela revista medíocre é um bónus inesperadamente agradável no ano do seu centenário); a parecença entre Cesariny como o Pascoaes de Pessoa, e Pessoa como o Cesariny de Cesariny no Capítulo 5 (o livro de Cesariny O Virgem Negra é talvez o livro que faltava na minha lista dos grandes livros sobre Pessoa); e a relação simétrica, nos dois capítulos finais, entre as duas obras de Pessoa que todos os críticos vulgares consideram como mais completamente opostas: Mensagem e O Livro do Desassossego. Estes dois livros são tradicionalmente acarinhados com reboliço pelos que pensam, respectivamente, que o primeiro é o livro do Benito Mussolini que podia ter corrido bem, e o segundo o livro do Walter Benjamin que não correu mal. O primeiro apresentaria assim uma visão unificada do destino de Portugal; o segundo uma visão fragmentária do concelho de Lisboa.

António Feijó defende que não há fragmentos em O Livro do Desassossego ou aliás em lado algum; acha que o livro é pelo contrário o exemplo deliberado de um programa formalista de literatura. Não cai todavia na tentação primitiva de imaginar que não haja unidade em Mensagem: Mensagem é para si unificado por aquilo a que chama “um lamento tonal.” Trata-se da melhor descrição que conheço do único livro em português que Pessoa publicou. Lamentos desses, não sem relação com o adjectivo “pastoril” do título do livro, a que voltarei, estava a crítica habituada a encontrar apenas em O Livro do Desassossego. Vai ter de mudar de hábitos, como vai ter que perceber que o Fernando Pessoa que escreveu os dois livros é muito mais que um cabide onde se penduram as várias fatiotas psicológicas que a indústria celebra e exporta.

A simetria entre Pessoa e Pascoaes

A simetria mais temível deste livro, e de que se seguem todas as outras, é porém a simetria entre Pessoa e Pascoaes. Parece à primeira vista estranho que um livro que ostensivamente é sobre Pessoa seja também sobre Pascoaes. António Feijó diz-nos de muitas maneiras que quem não percebe Pascoaes não percebe Pessoa; mas também que para perceber Pascoaes não é em rigor preciso perceber Pessoa. Tal como São Paulo, que achava que a fé, a esperança e a caridade eram coisas muito boas, achava que a caridade era particularmente boa; assim António Feijó acha que Pascoaes é particularmente importante. E nisso seria acompanhado, de modo embora mais reticente, pelo próprio Pessoa. Com efeito, Pascoaes e Pessoa foram dois cães grandes que se cheiraram com desconfiança e que não se quiseram frequentar: mas por razões diferentes. A este respeito o livro de António Feijó é uma sequela ou uma reiteração em modo racional do romance de 1958 de Agustina Bessa-Luís, que refere numa das suas notas maravilhosas, e onde se força o encontro entre Pessoa e Pascoaes. Claro que aos romancistas tudo é mais fácil; e, embora reconhecida nos melhores, como Agustina Bessa-Luís, não lhes é normalmente requerida a inteligência crítica que António Feijó tem de sobra.

O ponto médio deste livro, o capítulo 4, é justamente um capítulo sobre Pascoaes. É a partir deste capítulo que se pode perceber o ânimo mais importante do livro. António Feijó discute aí as cinco biografias tardias de Teixeira de Pascoaes (de São Paulo, São Jerónimo, Napoleão, Camilo Castelo Branco e Santo Agostinho), publicadas entre 1934 e 1945. A discussão presta grande atenção a uma expressão que o próprio Pascoaes usou a propósito de Santo Agostinho e ao seu “anseio nocturno” de conhecer a alma humana: a expressão “estudos biográficos de Satã”. A expressão parece-me ser uma das origens ou pelo menos uma das explicações para o título do livro. Dado que o genitivo “de Satã” é obscuro, observa António Feijó, não sabemos bem se Satã é assunto ou autor dos estudos biográficos de que Pascoaes fala. O que num certo sentido pode importar muito importa no entanto menos. Numa autobiografia, como a conhecida autobiografia de Santo Agostinho, o autor é sempre o assunto principal (e na crítica, como iria mais tarde observar Oscar Wilde, também). A posição de Satã é todavia não só a posição suposta de Santo Agostinho face a si próprio como a posição de Deus face à criação, a que Pascoaes chama “o hálito sujo de Satã.” Este hálito sujo que resulta da criação são as vidas das pessoas: dos santos, imperadores, e poetas cujas biografias Pascoaes no fim da vida cultivou com propósito.

António Feijó observa no entanto que a expressão “estudos biográficos de Satã” descreve ainda outra coisa: a posição do próprio Pascoaes face a Santo Agostinho. “Também eu,” Pascoaes escreveu, “adoro os Santos, mas como demónio, isto é, martirizando‑os. Martiriza‑se uma flor, para se lhe extrair todo o perfume.” É desta frase que derivam, tenuemente modificados, dois dos termos do título do livro: “admiração” e “diabo.” Se perceber um livro implica até certo ponto perceber o seu título, no caso deste livro, também porque o título é invulgar (e invulgar num livro de crítica literária), a necessidade é ainda maior. O que quer dizer “admiração pastoril pelo diabo”?

A admiração pelos poetas

A frase, previne com escrúpulo António Feijó no prefácio, é do romance O Homem sem Qualidades. Há no entanto malícia no seu escrúpulo. De facto, duas das principais proezas críticas do livro são as de nos convencer, por um lado, que a frase é de Teixeira de Pascoaes; e por outro, que a frase designa certas coisas em que só António Feijó podia ter pensado. A admiração pastoril pelo diabo é para António Feijó a admiração que somos tentados a ter pelos nossos verdadeiros biógrafos, a saber, a admiração que temos pelos poetas. É esta admiração que normalmente se imputa aos críticos, àqueles que lêem, estudam e escrevem sobre poesia. Neste sentido, Pessoa e Pascoaes, diferentes entre si como eram, foram essencialmente biógrafos: aquilo que conhecem, ou descrevem, é a alma. É porque conhecem as almas daqueles que os lêem melhor do que eles próprios alguma vez conhecerão que os seus anseios são sempre, como observa Pascoaes mas poderia ter observado Pessoa, “anseios nocturnos.” O que há de intratável na melhor poesia, nos melhores romances, no melhor teatro (ou, como sugeriu o sempre surpreendente Kant, na melhor filosofia), é o que neles é propriamente diabólico: como é que nos puderam descrever melhor que nós próprios? O que há de diabólico nos poetas não é o modo como nos ajudam ou nos tentam, mas o modo como nos retiram a nossa autonomia. Quem admira o diabo confessa a sua falta de autonomia.

Do título do livro é preciso contudo explicar o adjectivo ‘pastoril.’ O demónio de Pascoaes admira os santos que martiza; e os leitores de Pascoaes e Pessoa admiram os seus biógrafos, que os martirizam. O que quererá no entanto dizer admirar pastorilmente tais biógrafos, os nossos autores preferidos? A palavra ‘pastoril’ foi usada famosamente pelo grande crítico literário William Empson para descrever uma atitude pessimista face às possibilidades de melhoria dos negócios humanos. “Todos os grandes pronunciamentos poéticos,” observou Empson em 1935 (estava Pascoaes a acabar o São Jerónimo, e Pessoa a citar Ricardo Reis no leito de morte), “sugerem aos leitores, apesar de não o dizerem,   . . . que as coisas não podem ser melhoradas.” Uma admiração pastoril é assim propriamente uma admiração sem remédio ou solução. É muito parecida com a admiração de Pessoa por Portugal em Mensagem; mas é também parecida com a admiração que os críticos em geral têm por aquilo que criticam. No modo pastoril, o sentido de cumprimento que a palavra ‘crítica’ tem em ‘crítica de arte’, ‘filosofia crítica’ e ‘crítica literária’ junta-se aos sentidos mais correntes do termo, que é também mais frequentemente sinónimo de ‘maledicência’ ou ‘admoestação.’

O título deste livro é um resumo da teoria da crítica de António Feijó. O livro é essa teoria. A expressão “uma admiração pastoril pelo diabo” refere-se à posição de quem só pode admirar aquilo que não consegue melhorar. Essa posição não é o avesso do programa formalista que António Feijó vê em O Livro do Desassossego. É pelo contrário indissociável de todos os programas formalistas, nomeadamente do de Empson. Nela se acomoda sem dificuldade o lamento tonal de Pessoa a propósito de Portugal, e aliás o lamento tonal de Pascoaes a propósito de todas as criaturas que biografou. Comum a tais programas é a insistência de que o nosso interesse pela criação, incluindo pelos animais da criação, precede a nossa admiração pelos criadores; o formalismo é a insistência na prioridade das criaturas. Só enquanto criaturas, aliás, somos susceptíveis de entreter atitudes proposicionais e por isso de admirar o que quer que seja. Mas é também neste sentido que, como António Feijó sugere, passamos a outra parte da vida a admirar criadores, por exemplo a admirar grandes escritores como Fernando Pessoa; e só a partir daquilo que escreveram; e sempre neste modo pastoril. Este livro é assim, para além de um livro sobre escritores, um livro sobre o facto, cada vez mais raro, de haver quem diz em voz alta que os admira.