A Volta a França está a chegar aos Pirenéus. Domingo foi dia de transfer para a caravana do Tour, que deixou Plumelec, na Bretanha, e aterrou em Pau, depois de nove dias a rolar. Segunda-feira foi dia de descanso para todos (e de más notícias para Ivan Basso), mas terça já houve Tour, uma etapa de montanha, a primeira de três em três dias, mais suave, com três contagens de 4.ª categoria até ao final, em La Pierre-Saint-Martin, mas que antecipa o “inferno” que vão ser os próximos dois dias. Já amanhã, o pelotão sobe ao Col du Tourmalet. Quem sair daqui vivo, ainda terá de subir aos Alpes nas etapas finais. Mas já lá vamos.
Há seis contagens de montanha na etapa de amanhã. As três primeiras são de 3.ª e 4.ª categoria. Até aqui, tudo bem. Depois vem Col d’Aspin, contagem de 1.ª, com 2.115 de metros de altitude, 17,1 km e 7,3% de inclinação. Tourmalet é uma contagem de categoria extra, a chamada Hors Catégorie. São 2.115m de altitude, 17,1 km e 7,3% de inclinação. A chegada à meda é no Côtealtitude de Cauterets, contagem de 3.ª categoria. A dureza vai certamente fazer “mossa” no pelotão e definir, desde já, quem são os trepadores (ou as surpresas) que vão apontar à vitória final.
Marco Chagas é um nome (e uma voz, na TV) incontornável do ciclismo português. Também andou por França, no Tour, e foi um ciclista de eleição nas décadas de 1970 e 1980. “É difícil para todos, mas para os homens de terreno plano são dias mais complicados. Eles sabem disso e também se organizam, formando grupos mais atrasados para, em conjunto, porque isoladamente corriam um risco maior de ser eliminados, ultrapassar as montanhas. São dias complicados, mas se querem chegar a Paris, têm que os fazer”, lembra Chagas.
“Por si só, a inclinação, toda aquela altitude, já faz estragos. São montanhas longas, míticas, que definem muitas vezes o vencedor. E são etapas que logicamente os trepadores querem ganhar. Quem não é trepador, limita-se a tentar acabar. E tentar acabar já é uma vitória”, explica Paulo Ferreira, ex-ciclista do Sporting, que venceu uma etapa do Tour na década de 1980.
Paulo recorda o que lhe dizia um ex-treinador: “A recuperação é feita logo através de líquidos, banho, massagens e jantar. O resto é a noite que faz, com repouso. Eu tinha um treinador, o Manuel Graça, que dizia que 50 por cento da recuperação era um bom banho. Mas o ciclismo é um desporto particular. No outro dia há mais. É um desporto em que damos tudo. E no dia seguinte voltamos a dar tudo. O ciclista tem que sofrer. O sofrimento é a base da modalidade.”
Nuno Loureiro, 35 anos, é o diretor clínico da Seleção Nacional de Ciclismo desde 2013. Sempre foi um amante da modalidade, chegou mesmo a ser praticante de BTT, e por isso se dedicou à medicina desportiva no ciclismo. Explica como é possível superar uma prova tão dura, e sobretudo como é possível aos atletas superarem os dias terríveis da alta montanha.
“Nós temos uma grande preocupação do ponto de vista nutricional. Fazemos um reforço dos hidratos de carbono, de proteína, e, durante a etapa, intensificamos esse reforço. Posteriormente, temos estratégias de recuperação que vão desde a alcalinização da água às massagens, à eletroterapia. O fundamental é, imediatamente após o fim da corrida, repor o que foi gasto. Nós temos um período entre 30 minutos a uma hora em que fazemos essa reposição. Depois o atleta faz um período de trabalho de recuperação física, toma banho, janta e descansa até à prova seguinte.”
Após a passagem pelos Pirenéus, seguem-se mais alguns dias de média montanha, sem subidas de maior. Os Alpes vêm à 17.ª e penúltima etapa. Numa das 21 curvas do Alpe D’Huez, está a estátua que homenageia a vitória de Joaquim Agostinho. O português alcançou o maior feito da sua carreira ao vencer a mítica etapa de 14 km, após se ter distanciado do pelotão numa das curvas, e chegou isolado à meta.
A penúltima etapa promete ser uma das mais emocionantes. É a primeira vez na sua história que a Volta a França vai subir ao Alpe D’Huez tão tardiamente e com tanto por resolver na classificação. O Arco do Triunfo, a 26 de julho, vem logo a seguir. Mas este Tour, mais do que qualquer outro num passado recente, é o Tour dos trepadores por excelência, com oito montanhas pelo meio.
“São duas provas de montanha, quer o Tourmalet quer o Alpes d’Huez, míticas, por, cada uma delas, decorrer em regiões marcantes como os Pirenéus e os Alpes, e por estarem na maior prova velocipédica do mundo. Há mais etapas de montanha noutras corridas, talvez mais ou igualmente difíceis, mas o Tour já passa por aqui há muitos, muitos anos, decidiram-se aqui muitas provas, nasceram aqui muitos campeões, e a superação é imensa.”
Desde 2011, quando francês Pierre Roland venceu nos Alpes, que o Tour não passava por cá. Marco Pantini, o “pirata”, é ainda hoje o detentor das duas subidas mais rápidas, em 1995 e 1994. Curiosamente, o vencedor nesses anos foi o espanhol Miguel Induráin. A chegada ao Alpe D’Huez tem duas contagens de montagem de categoria extra: Col de la Croix de Fer, com 2067m de altitude, 29 km e 5,2% de inclinação; e claro, Alpe D’Huez, a meta, a 1850m, 13.8 km a 8.1%.
O mito de Joaquim Agostinho
Alves Barbosa, em 1956, foi o primeiro dos ciclistas portugueses a pedalar na volta a França. Mas quando se fala da presença de portugueses no Tour, Joaquim Agostinho é nome que mais se destaca. O malogrado ciclista de Torres Vedras detém até hoje o recorde de presenças nacionais na prova, 13 no total, mas também de vitórias em etapas: cinco. E quando se relembram as vitórias de Agostinho na Volta a França, à memória vem-nos logo o dia 15 de julho de 1979, quando venceu na mítica etapa do Alpe d’Huez. Em 1979, Joaquim Agostinho terminaria o Tour em terceiro lugar. Pelo segundo ano consecutivo.
Foi também ele, Joaquim Agostinho, o primeiro português a subir ao lugar mais alto do pódio na Volta à França. Foi em 1969 — e logo em duas etapas. A 3 de julho de 1969, Agostinho venceu isolado a 5.ª etapa, entre Nancy e Mulhouse. Dez dias mais tarde, o ciclista voltaria a vencer, desta vez entre Motte e Revel. “Ele só começou a correr aos 25 anos. Não tinha escola de ciclismo, não tinha técnica, chegou ao Tour e só tinha começado a correr no ano antes. Mas esteve logo na discussão da Volta a Portugal, e em França ganhou as tais duas etapas e fez oitavo lugar. E caiu não sei quantas vezes”, recorda Marco Chagas.
Chagas correu ao lado de Joaquim Agostinho no Sporting. “O Joaquim era um fora-de-série. Aquele homem tinha uma compleição física fora do comum, era um verdadeiro atleta. Tinha uma capacidade de oxigenação enorme — e à época nem se faziam os testes que se fazem hoje para saber isso. Era muito bom em termos musculares. Ah, e descansava com muito facilidade. Ele terminava uma etapa, tomava banho, e recuperava-se rapidamente. Desligava a ficha, como se costuma dizer na gíria. Tudo isso fazia dele um corredor extraordinário”, explica.
Depois da morte de Joaquim Agostinho na Volta ao Algarve de 1984, na sequência de uma queda motivada por um choque contra um cão durante uma das etapas, Marco Chagas e o Sporting voltaram a França para disputar o Tour sem ele. Chagas terminou em 77.º lugar. Outro ciclista do clube, Paulo Ferreira, surpreendeu o pelotão e venceu uma das etapas. Com a vitória na etapa entre Bethume-Cergy e Pontaise, o ciclista tornou-se no segundo português, depois de Agostinho, a subir ao lugar mais alto do pódio.
Paulo Ferreira deixou de correr em 1988, por causa de uma maldita queda. Começou a pedalar aos 12 anos. Hoje, aos 53 anos, voltou à bicicleta para manter a forma. “Recordo-me bem daquela etapa. Foi uma etapa plana, a quinta do Tour, e eu senti que poderia ser aí que eu poderia fazer a diferença. Na alta montanha não teria qualquer hipótese. Ataquei, entrei na fuga e cheguei isolado ao fim. Era um tempo em que corria o Bernard Hinault, o Greg LeMond, o Laurent Fignon, e eu venci uma etapa.”
Mas a participação do Sporting na Volta a França desse ano, um grande Sporting, com Agostinho, Chagas, Eduardo Correia, Benedito Ferreira ou José Xavier, só aconteceu por causa de Agostinho, e podia bem não ter acontecido devido à sua morte, poucos meses antes.
“A nossa participação não estava prevista nesse ano. Foi o Agostinho, com o nome todo que granjeou, que conseguiu integrar a equipa do Sporting no pelotão. Sem ele não daquilo teria sido possível. Quando ele faleceu, em maio, ficou tudo em causa, claro. Mas nós somos profissionais e entendemos que haveríamos de participar. Sempre com a imagem dele presente. Dediquei-lhe a vitória”, lembra Paulo Ferreira.
Na classificação geral, Joaquim Agostinho é, até agora, o português mais bem classificado de sempre, com o 3.º lugar em 1978. Seguem-se José Azevedo com um 5.º posto em 2004 (foi 6.º em 2002) e Alves Barbosa, que foi 10.º em 1956. Rui Costa, que é, à entrada para as etapas de alta montanha, 23.º na geral, a 5 minutos e 20 segundo do líder Chris Froome, da SKY, procurará, pelo menos, chegar aos dez primeiros. Mas também há Nelson Oliveira, Tiago Machado e José Medes, que podem, diz Marco Chagas, aspirar a vencer uma etapa.
“Eles estão bem. A questão é que cada corredor tem as suas características e o seu posicionamento na equipa. O Rui é chefe da Lampre, por isso, espera-se mais dele, o melhor, e quem sabe ganhar alguma etapa. Ganhou duas há três anos. O Tiago também anda bem na montanha, mas vai trabalhar para o Joaquim Rodríguez. O Nelson trabalha para o Rui Costa. O Zé Mendes é o que tem maior liberdade, porque a equipa é mais modesta. Talvez em alguma fuga consiga vencer uma etapa.”