Esta é a estranha história de Mr. No Ears, um gato sem orelhas que se tornou no centro de uma disputa judicial entre a associação Amigos dos Gatos do Algarve (AGA) e um casal residente em Lousada, no Porto.
Na base da disputa está uma queixa por furto, apresentada pela AGA às autoridades algarvias em setembro deste ano, altura em que Mr. No Ears terá sido raptado da sua colónia em Albufeira por Andreia Martins e Paulo Baptista. O caso está ainda em tribunal e encontra-se agora em fase de recurso.
Mr. No Ears nasceu há cinco anos no cimo da falésia da praia do Peneco, em Albufeira, rodeado de outros gatos selvagens que, como ele, quiseram fazer do local a sua casa. Durante o dia, costumava pedinchar comida aos turistas que normalmente enchem a esplanada junto à praia e, ao final da tarde, tinha por hábito deitar-se sobre o muro branco da falésia a observar a praia, lá em baixo.
De acordo com Lesley Normington, fundadora da AGA, responsável pelo bem-estar dos gatos vadios de Albufeira, a colónia de gatos da praia do Peneco existe há pelo menos oito anos. Atualmente, vivem no cimo da falésia 11 gatos, quatro deles brancos.
Um animal “especial” e carismático, todos pareciam simpatizar com o pequeno gato branco, que teve de ficar sem orelhas na sequência de uma dermatite solar. Os turistas começaram a ganhar o hábito de lhe tirar fotografias quando estava deitado sobre o muro, de que tanto gostava, e com o passar do tempo tornou-se numa espécie de vedeta local. Todos os que passavam por Albufeira faziam questão de conhecer o charmoso gato sem orelhas.
A AGA criou-lhe então uma página no Facebook, que conta já com 23.258 likes. “É um gato muito especial”, garantiu ao Observador Lesley Normington. “É muito popular. As pessoas criam uma ligação com ele — com este gato de um só olho e sem orelhas. Representa os gatos da rua, do Algarve e de todos os sítios.”
Os fãs são de todo o mundo, e fazem questão de ajudar a AGA a zelar pela saúde e bem-estar de Mr. No Ears e de todos os gatos vadios de Albufeira e arredores. Todos os meses, a associação recebe várias centenas de euros em doações que, maioritariamente, vêm do estrangeiro. “Cerca de 99% das doações que recebemos vêm dos Estados Unidos da América, Inglaterra e outros países europeus”, referiu Lesley.
O desaparecimento de Mr. No Ears
Em setembro deste ano, Mr. No Ears foi levado para Lousada, no Porto, por Andreia Martins e Paulo Baptista, então de férias no Algarve. Como é que o casal conseguiu essa proeza, ninguém parece saber ao certo. O gato, habituado a viver na falésia juntamente com a sua colónia, não se deixava apanhar facilmente.
“Já várias pessoas o tinham tentado adotar, mas ele não se deixa apanhar”, disse ao Observador Paula Alves de Sousa, advogada especialista em direito animal que agora está à frente do caso.
Segundo Lesley Normington, os voluntários da AGA deram por falta do gato no dia 11 de setembro. Apesar de terem estranhado o seu súbito desaparecimento da falésia da praia do Peneco, decidiram esperar alguns dias antes de o procurarem noutro local. Enquanto isso, no dia 15 de setembro, surgiu no Facebook a página “Mr. No Ears – The Truth”, criada por Andreia Martins e agora desativada.
Na página, a mulher de 28 anos, contava a história de como ela e o companheiro, Paulo Baptista, tinham encontrado o famoso gato de Albufeira na rua e em mau estado. Tinha “as orelhas em ferida e cheirava a podre”, contou Andreia, citada pelo Jornal de Notícias. “O estado dele é que nos levou a adotá-lo.”
Foi esse mesmo “estado” que terá levado o casal a visitar um veterinário em Setúbal, durante a viagem de regresso a Lousada. O veterinário terá limpo as orelhas do animal e emitido um relatório sobre o seu estado de saúde, que parecia normal. Porém, sugeriu a realização de exames adicionais e prescreveu a colocação de pensos Fentamil (analgésicos).
No mesmo post da página “Mr. No Ears – The Truth”, Andreia Martins fez questão de frisar que, nem ela nem o companheiro, sabiam quem era o gato até “terem feito uma pesquisa na internet” na mesma noite em que o encontraram. Apesar disso, o casal não fez qualquer esforço para devolver Mr. No Ears à sua colónia e acusou a AGA de maus tratos.
Lesley Normington, porém, garante que Mr. No Ears não estava mal tratado. “Há uma fotografia tirada no dia em que ele foi levado e que mostra que ele estava de boa saúde.” A fundadora da AGA vai ainda mais longe, defendendo que Andreia Martins e Paulo Baptista sabiam perfeitamente de que gato se tratava. Para ela, nada foi ao acaso.
“Eles tinham uma gata branca chamada Sunshine, que foi abatida em finais de junho. A página da gata foi apagada a 18 de setembro porque tinha posts na timeline das páginas do Mr. No Ears e da AGA, de março de 2015. A Andreia Martins era também membro de um grupo privado de um resgate que a AGA tinha feito a 42 gatos abandonados”, contou.
Um gato (muito) doente que precisa de (muita) ajuda
Uma vez em Lousada, o casal não perdeu tempo a levar Mr. No Ears a um novo veterinário, desta vez para ser identificado eletronicamente em nome de Paulo Baptista. De acordo com Lesley Normington, os dois iniciaram então uma campanha de angariação de fundos no Facebook, alegando que o gato tinha cancro nos ossos. O NIB da conta pessoal de Paulo Baptista foi disponibilizado para que, quem quisesse, pudesse contribuir para os tratamentos de Mr. No Ears.
Cerca de duas semanas depois de ter sido levado para Lousada, Mr. No Ears fez uma nova visita ao veterinário. Foi então submetido a novas análises e a uma TAC. O relatório partilhado confirmou o que os voluntários da AGA já sabiam — o gato não tinha cancro nos ossos. Porém, foram detetados problemas nos rins, o que levou ao internamento de Mr. No Ears num hospital veterinário em Lousada.
A fundadora da AGA garante que a página “Mr. No Ears – The Truth” era “uma de muitas” dedicadas a angariar fundos para curar gatos doentes que tinham sido encontrados pelo casal. “Todas tinham fotografias de gatos a sofrer, com doenças ou lesões. Todas solicitavam donativos para a mesma conta bancária”, contou a inglesa.
Apesar de, de acordo com Lesley, a maioria das contas de Facebook terem desaparecido, Andreia Martins e Paulo Baptista mantêm-se ainda ativos na rede social, nomeadamente através de páginas como a “Dizprotegidos – proteção animal“, um projeto que, de acordo com a descrição, tem como objetivo “recolher das ruas o maior número de de animais” possível, ou a “Animais em Risco“.
Tanto numa como noutra, o casal de Lousada publica quase diariamente fotografias de gatos abandonados, “negligenciados e doentes”, que recolhem da rua. Segundo Lesley Normington, num antigo post, Andreia Martins terá dito que tinha à sua responsabilidade mais de 40 gatos, a “maior parte doente”, e cinco cães. Tanto na “Dizprotegidos” como na “Animal em Risco”, o NIB de Paulo está, mais uma vez, à disposição de quem quiser contribuir.
Esta página destina-se a divulgar gatos e gatinhos para adopção, a mostrar o trabalho de quem os recolhe, a fazer leilõ...
Posted by Dizprotegidos - protecção animal on Tuesday, 20 October 2015
Miguel Fonseca, advogado de Andreia Martins (que, de acordo com o mesmo, não tem o apelido “Martins” no nome, como tem sido divulgado), garante que “o gato teve uma sorte muito grande”. “Havia um animal que estava doente e que precisava de tratamentos veterinários. A Andreia gastou mais dinheiro com este gato do que com outro qualquer”, disse ao Observador. Para o advogado, “a Andreia é aquilo a que se chama ‘uma alma pura'”. “Qualquer animal para ela é como se fosse um filho.”
O caso chega a tribunal
Uma vez descoberto o paradeiro do gato, a AGA iniciou conversações com Andreia Martins e Paulo Baptista, tentando convencê-los a devolver Mr. No Ears à sua adorada falésia algarvia. Mas estes negaram-se a fazê-lo e Lesley Normington viu-se obrigada a dirigir-se à esquadra da GNR em Albufeira e a apresentar queixa por furto.
Uma vez formalizada a queixa-crime, a GNR decidiu remover o gato do hospital veterinário, onde ainda se encontrava internado devido a um problema nos rins, e levá-lo para o canil do Porto. De acordo com o advogado Miguel Fonseca, esta remoção foi feita “sem mandato, formal ou informal” e segundo ordens transmitidas pelo comandante da GNR de Albufeira ao comandante da GNR de Lousada.
“A GNR atacou a clínica veterinária! Entraram na clínica e levaram o gato, sem mandato nem nada! Saíram dali e foram ao canil do Porto, e obrigaram o canil a ficar com o gato”, contou ao Observador. Devido ao estado de saúde frágil do animal, o responsável do canil terá elaborado um documento onde deixou bem claro que não se responsabilizava por Mr. No Ears, uma vez que este “podia morrer a qualquer momento” e que não dispunha dos meios para o tratar.
“Foi um assalto à mão armada!”, garante Miguel Fonseca. “É um atentado a um Estado de direito e é por isso que eu decidi pegar no caso.”
Depois de Mr. No Ears ter sido levado do canil portuense, a AGA apelou ao tribunal para que tirasse Mr. No Ears do canil. Em vez disso, o gato foi devolvido a Andreia Martins e Paulo Baptista e o caso arquivado. Miguel Fonseca garante que foi apenas nesta altura que a GNR de Albufeira apresentou o caso ao Ministério Público (MP) que, em menos de 24 horas, mandou arquivar o processo.
O advogado de Andreia Martins defende que todas as diligências, incluindo a remoção do gato do canil do Porto, foram feitas sem o conhecimento do MP, que só terá sido informado cerca de um mês depois de a queixa-crime ter sido apresentada na esquadra da GNR de Albufeira. Miguel Fonseca admitiu ainda já ter avançado com um processo contra os comandantes de Albufeira e Lousada. “Vou até às últimas consequências”, acrescentou.
Contactada pelo Observador, a GNR garantiu que, até ao momento, não existe nenhum “processo levantado contra os comandantes de Albufeira e Lousada”. Em relação à queixa por furto, o gabinete de imprensa da Guarda Nacional Republicana confirmou que esta foi recebida “no dia 18 de setembro do presente ano” pelo Subdestacamento Territorial de Albufeira. A queixa inicial terá sido “posteriormente complementada com a informação de que o mesmo estaria a ser usado pela denunciada para a obtenção ilícita de donativos”.
“A GNR efetuou diligências no sentido de recuperar o felino e entregar aos serviços Municipais até prenuncia da entidade competente. No entanto, por decisão do Ministério Público, foi a queixa mandada arquivar”, esclareceu a GNR.
Segundo Paula Alves de Sousa, terá sido nesta altura que o Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente (SEPNA), um departamento da GNR, terá feito uma visita à residência de Andreia e Paulo, onde não terá encontrado rasto dos 40 gatos e cinco cães que estes supostamente albergam. Já Miguel Fonseca garante que as forças da GNR nunca “passaram da soleira da porta”. “Andaram a rondar durante dois ou três dias mas, pelo que sei, ninguém passou da soleira da porta. Dei instruções para que não deixassem entrar ninguém.”
“Isto não é apenas o caso de um gato, é um assunto muito sério”, frisou o advogado Miguel Fonseca.
Para a advogada Paula Alves de Sousa, que só recentemente tomou conta do processo, o grande erro de todo o caso foi a queixa inicial. Caso contrário, garante, o gato já estaria de volta a Albufeira. Até porque o despacho de arquivamento deixou bem claro que o gato deveria ser devolvido à sua colónia, no Algarve.
Na queixa-crime apresentada por Lesley à GNR de Albufeira, a inglesa frisou que Mr. No Ears era um gato de rua, e que não pertencia à AGA nem a ninguém. Por causa disso, a ação, iniciada em setembro, nem sequer chegou a andar. “Morreu antes de ter nascido”, garante Paula Alves de Sousa.
Um despacho de arquivamento foi rapidamente emitido, alegando que a “a queixosa”, admitiu “que o animal, apesar de ser cuidado pela associação, não era de sua pertença, pelo que não pode ser considerada pessoa com legitimidade para apresentar queixa por furto”. Ou seja, de acordo com o despacho de 5 de outubro, a AGA “não tinha legitimidade para participar um furto”, uma vez que este se trata de um “crime de natureza particular”, explicou a advogada.
Ainda assim, no documento “sugere-se aos denunciantes que reponham” o gato no seu local habitual, “uma vez que este sempre viveu naquele local e a associação queixosa garante o bem-estar do mesmo, fornecendo-lhe alimentação e cuidados veterinários no local onde o mesmo vive e onde se encontra acompanhado dos animais da sua colónia”.
“O afastamento do animal das suas rotinas pode causar sofrimento ao mesmo, pelo que, sendo óbvio que todos querem o bem do gato, seria conveniente a devolução do mesmo ao seu local habitual. De qualquer modo, os denunciantes farão o que entenderem melhor”, refere ainda o despacho.
Para além disso, Paula Alves de Sousa considera que não foram tidas em conta as dificuldades de comunicação de Lesley e das outras responsáveis da associação. “As pessoas são inglesas, não percebem bem português. Não se souberam explicar, e o tribunal não teve isso em conta.”
É que a colónia de Mr. No Ears não é uma colónia qualquer. Esta encontra-se registada na Câmara Municipal de Albufeira, o que significa que se trata de uma colónia legalizada. No local, até se encontra uma placa que diz isso mesmo, e que é ali que mora o “gato Mr. No Ears”.
“A Andreia Martins diz que ganhou a ação, mas ela não ganhou ação nenhuma. O assunto vai ser discutido em tribunal, de várias formas e de várias vertentes”, referiu Paula Alves de Sousa. A advogada já está a planear avançar com novas medidas, e garante que o caso está longe de ter terminado.
Enquanto isso, ninguém parece saber onde se encontra Mr. No Ears. A página de Facebook criada por Andreia e Paulo desapareceu, e o casal deixou de publicar imagens do animal. A última fotografia, tirada no dia em que foi levado do canil do Porto, mostra um Mr. No Ears muito diferente. Doente e abatido, o animal da imagem pouco ou nada se parece com o famoso gato branco sem orelhas que vivia perto da praia de Peneco e que, nos dias quentes de verão, costumava dormir à sombra dos arbustos, no cimo da falésia.
DEAR FRIENDS OF MR NO EARS AROUND THE WORLD We do not know what influence your signing this petition created by USA...
Posted by Mr No Ears - Sr. Sem Orelhas on Monday, 19 October 2015
Miguel Fonseca garante, porém, que o gato agora está “como novo”. “O bicho nem parece o mesmo. Recebe comida da boa, cuidados médicos. Saiu-lhe a sorte grande”, disse. “Para a Andreia, [este caso] é a luta de uma vida. Não se trata apenas deste gato, mas de todos os animais que precisam de ajuda.”
Um gato muito cobiçado
Esta já não é a primeira vez que Mr. No Ears se vê envolvido em questões judiciais. Em setembro do ano passado, a AGA foi processada pelo hotel Rocamar, localizado junto à praia do Peneco, por difamação. A história, também ela estranha, começou quando um empregado do hotel pediu a Lesley e à AGA que levassem o gato dali devido ao seu aspeto. Ao ver o seu pedido ignorado, o empregado apresentou uma queixa ao veterinário municipal que, por sua vez, aconselhou Lesley a levar o gato para casa.
Por precaução, Mr. No Ears foi então afastado da falésia por uns dias. A custo, Lyn, voluntária da AGA, levou o gato para sua casa, dando conta do sucedido na página de Facebook do animal. O post original, que já não se encontra disponível, fez chover comentários indignados e levou o hotel a processar Lesley e a AGA por difamação.
20/09 23:00 In response to request for news on Mr No Ears, this txt from Lyn a short while ago,“......VERY SAD. MOST...
Posted by Mr No Ears - Sr. Sem Orelhas on Saturday, 20 September 2014
O caso chegou mesmo a ir a tribunal, mas o juiz considerou que a queixa não tinha fundamento e o processo também foi arquivado.
Artigo atualizado a 10/11/2015, às 18h09, com os esclarecimentos prestados pela GNR.