Era uma vez cinco irmãs órfãs, de 11 a 17 anos, que foram criadas pela avó e por um tio numa vila costeira da Turquia, a centenas de quilómetros de Istambul. Unidas como as ervilhas de uma vagem, as cinco celebraram o fim de mais um ano letivo na praia com alguns rapazes seus colegas, sempre vestidas com os seus uniformes escolares, e depois foram roubar fruta a um pomar. Uma vez chegadas a casa, acabou-se a brincadeira. E a liberdade, também. Uma vizinha foi queixar-se à avó e ao tio, e segundo estes, o comportamento das irmãs trouxe “vergonha à casa da família” e “maculou-as”, ao terem andado às cavalitas dos rapazes “masturbando-se nos seus pescoços”.

Assim, a casa familiar transforma-se na prisão das cinco irmãs (com barras nas janelas e tudo), que não irão mais à escola. Submetidas a um curso intensivo de prendas domésticas para acelerar o processo do casamento combinado, é-lhes retirado tudo que as possa “corromper”, como computadores, telemóveis ou acessórios de maquilhagem, e os calções e T-Shirts são substituídos por vestidos que, nas palavras de Lale, a mais nova, “são sem forma e cor de merda”. A “fábrica de esposas” começa a funcionar e duas das irmãs são despachadas para os respetivos noivos. Mas como as outras três não se vão deixar ir sem luta, seguir-se-á uma tragédia, e uma revolta.

[Veja o “trailer” de “Mustang”]

Tudo isto sucede no espaço de algumas semanas de um verão em “Mustang”, o primeiro filme da cineasta franco-turca Deniz Gamze Ergüven, que para contar esta história passada numa sociedade islâmica onde, apesar da crescente influência ocidental e do cosmopolitismo das grandes zonas urbanas, vigoram ainda valores morais e tradições sociais e religiosas constrangedoras das mulheres, escolheu não o formato de uma fábula ou de uma alegoria, mas um quadro francamente realista. A realizadora filma as cinco irmãs como se fossem uma entidade coletiva feito de cinco individualidades (as cinco jovens atrizes, quase todas estreantes, são formidáveis) que se vê afetado pela gradual dispersão devido aos casamentos combinados, mas fá-lo com um imediatismo e uma naturalidade que cancelam qualquer simbolismo rebuscado.

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[Veja a entrevista com a realizadora]

https://youtu.be/k7D_WxNGnD0

E funciona ainda mais a favor de Gamze Ergüven o não ter dado a “Mustang” o formato demonstrativo e primário de um panfleto feministóide odiento, ter evitado a diabolização fácil de personagens e situações (a avó e as tias das cinco irmãs não são bruxas torcionárias e tentam sempre atenuar a fúria autoritária do tio, uma delas consegue casar com o rapaz de quem gosta, e é frisado que os costumes já não são os mesmos em toda a Turquia), e sobretudo acentuar a alegria graciosa e enérgica das raparigas, que ousam desobedecer aos seu maiores e fogem de casa para ir assistir a um jogo de futebol só para mulheres, bem como a tenacidade com que resistem e se revoltam à imposição arbitrária de um destino ancestral. Por sentirem espontaneamente que o seu mundo já não é aquele, que os tempos mudam, e mesmo que não saibam explicar bem porquê, já não querem que as suas vidas sejam como as da avó e das tias, querem ser elas a escolher em vez de se submeter a ser escolhidas para outros.

[Veja as cinco jovens atrizes no Festival de Cannes]

“Mustang”, que já recolheu vários prémios internacionais e está candidato ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro pela França (é uma co-produção franco-germano-turca), tem um final aberto e elíptico, que não arrisca soluções confortáveis. Certo apenas é que é na mais nova e mais inconformada das cinco irmãs, Lale, que fica depositado o risco mas também a esperança de abrir a porta para um futuro diferente. É ela, a mais pequena de todas, a grande heroína deste filme que irradia feminilidade, graça imponderável, e rebeldia jubilosa.