Atenção: para que este artigo faça sentido, é importante esclarecer duas questões:

A primeira é que não sou um consumidor regular de banda desenhada — só por alguma falta de paciência, gosto de ler tudo de seguida, por isso dedico-me mais a histórias completas e graphic novels do que a publicações mensais. Porém, como fiz um par de livros de BD, as pessoas pensam que sou um entendido, e vou aproveitar-me dessa fama: afinal, quantas oportunidades é que vou ter para falar de super-heróis num jornal?

A segunda questão importante é: como definir o que é um super-herói? Eu diria que um super-herói é alguém extraordinário, alguém que se destaca dos demais humanos por alguma razão. Alguns terão super-poderes, outros não, mas a vida é assim mesmo. O Batman, por exemplo, apesar de ser um detective fora de série, destaca-se dos demais principalmente por causa da sua conta bancária que lhe permitiu construir uma cave espectacular. Assim sendo, faço aqui uma lista de cinco super-heróis que fazem a diferença.

BATMAN

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É impossível fazer uma lista de super-heróis sem incluir o Batman e, houvesse uma lista mundial, seria possivelmente o primeiro desse pódio. Este famoso justiceiro entrou no meu imaginário através do filme homónimo de Tim Burton, de 1989. A densidade emocional do homem-morcego e do seu alter ego Bruce Wayne é, acima de tudo, uma matéria prima fortíssima, e é talvez essa a razão pela qual vê a sua história revisitada e reinterpretada ao longo dos anos. É, possivelmente, o super-herói com a evolução histórica mais rica e variada, e muito provavelmente a personagem mais vezes desenhada na história dos comics. Na BD, esta evolução é especialmente clara: desde as histórias de Bob Kane, à saga de Ra’s al Ghul (Dennis O´Neil e Neal Adams) passando pelo colossal The Dark Knight Returns, de Frank Miller, até à mais recente Night of the Owls (Scott Snyder e Greg Capullo), que vamos assistindo à forma como a própria narrativa evoluiu e deixou de ser uma simples história de entretenimento, tornando-se literatura ilustrada. Batman teve um papel essencial no desenvolvimento da indústria e na sua própria passagem à idade adulta.

Batman também foi um veículo essencial para enriquecimento da linguagem do cinema e do audiovisual — desde o universo kitsch da série de 1966 com Adam West à recuperação do seu lado negro com os filmes de Tim Burton, sem esquecer a fenomenal série de animação de Bruce Timm, Batman regressaria ao abismos num uniforme com mamilos em “Batman e Robin” de Joel Schumacher. No entanto, a trilogia de Christopher Nolan voltou a restabelecê-lo como uma das maiores figuras da cultura pop de todos os tempos, de carácter intemporal e transgeracional. Batman é tão popular que chegou a dar origem a uma série de televisão — “Gotham” — em que já não precisa sequer de assumir o papel protagónico.

A profunda tragédia de que foi vítima quando era criança — o cruel assassinato dos seus pais à sua frente — fez de Batman a personagem tão sombria e tão humana que todos adoramos e com a qual empatizamos. Como justifica Kevin Smith: “We can’t all be Superman, but we sure as shit can train hard, and with loads of practice, we can be Batman.” Ou seja, nunca vamos poder ser o Super-Homem, mas o Batman, com jeitinho, talvez.

TOXIC AVENGER

toxic avenger

O Toxic Avenger (também conhecido como O Vingador Tóxico) é uma escolha muito insólita e pessoal. Criado em 1984 por Lloyd Kaufman para o filme com o mesmo nome, “Toxie” é um mutante que usa um tutu de bailarina e tem uma esfregona como arma – a explicação: quando Melvin Junko, um pobre empregado de limpeza do ginásio de Tromaville é humilhado por um grupo de bullies, opta por se atirar por uma janela, usando essa insólita indumentária.

https://www.youtube.com/watch?v=6rLEIpP8His

Feliz ou infelizmente, aterra num camião de resíduos tóxicos. Nasce assim o invencível Toxic Avenger — super herói de voz suave e de trato cortez, responsável por algumas das sequências gore mais hilariantes da história do cinema. Nos anos seguintes, esta personagem tornou-se um fenómeno de culto e viria a protagonizar três sequelas, uma série de animação para crianças (“Toxic Crusaders”) e uma banda desenhada editada pela Marvel.

[leia aqui uma entrevista recente de Lloyd Kaufman ao Observador]

ROBOCOP

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Em terceiro lugar, outro herói que teve a sua origem no cinema — foi criado para o filme do visionário realizador Paul Verhoeven, que será homenageado este ano no festival IndieLisboa. Não sendo exactamente um super-herói tradicional, Robocop segue os cânones típicos deste tipo de história. Tal como The Punisher, Blade ou o próprio Batman, a história de Robocop é uma história clássica de vingança.

Alex Murphy, um polícia de Detroit, é assassinado por um gang de perigosos meliantes. Uma equipa de cientistas decide transformá-lo num híbrido entre homem e máquina, dando ao famoso slogan do filme: “Parte homem, parte máquina… completamente polícia”. Porém, a parte humana vai ganhando terreno e sede de sangue, e segue-se um death toll verdadeiramente impressionante que o leva até às mais altas esferas da corrupção.

Robocop viajou para a banda desenhada (passando por várias editoras como a Marvel ou a Dark Horse Comics), para a televisão (em animação e imagem real), e para jogos de computador. Infelizmente, nenhum destes produtos conseguiu manter a magia do filme original, forte em crítica social e com um avançado conceito estético e narrativo. Nem mesmo a mente brilhante do argumentista Frank Miller, envolvido em duas das sequelas, viria a conseguir salvar a herança de Robocop. A esperança dos fãs ressurgiu em 2014, com o anunciado remake de José Padilha, o original realizador de “Tropa de Elite”. Porém, os estúdios derrotaram o realizador — o resultado final é um parente muito pobre do Robocop original. Padilha voltou a estar em topo de forma com a série “Narcos”, da Netflix, fazendo-nos imaginar o que o seu filme poderia ter sido se lhe tivessem dado a merecida liberdade criativa.

HELLBOY

hellboy

Hellboy é uma criação original de Mike Mignola, concebida em 1991 e editada pela primeira vez em 1993. A intenção original de Mignola era a de criar uma espécie de Liga da Justiça constituída por insólitas criaturas sobrenaturais. Assim surge a BPRD, uma agência que combate ameaças do oculto e investiga o paranormal. Enquanto concebia as personagens, surge o primeiro esboço de Hellboy, baseado na figura do seu pai e nas histórias sinistras que este contava. Este esboço faz com que Mignola decida dar especial atenção a esta personagem.

Na narrativa, de forte influência Lovecraftiana, os monstros são os heróis. O estilo simples e carismático do desenho de Mignola tranformaram os livros num fenómeno de culto quase imediato.

Hellboy é o nome terrestre de Anung Un Rama, um demónio bem intencionado e simpático que, enquanto criança, é invocado e capturado por Rasputin, que o entrega aos Nazis durante a Segunda Grande Guerra. É posteriormente salvo pelo exército americano e torna-se então funcionário da BPRD. As autoridades consideram-no “humano honorário”, e, apesar da sua insólita e gigante estatura, pensa e age como um adolescente: tem um sentido de humor ácido e muito mau feitio.

É um dos anti-heróis mais queridos de qualquer leitor assíduo de comics. Foi também adaptado ao cinema — e reza a lenda que quando o realizador Guillermo del Toro e Mignola decidiram conferenciar sobre quem seria o actor perfeito, a resposta foi em uníssono — Ron Perlman. E assim foi, apesar da insistência dos estúdios para que o actor Vin Diesel ficasse com o papel.

BARBARELLA

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Como já não vou para novo, e para fechar este artigo em grande, escolho a Barbarella, rainha da galáxia. Faço-o por duas razões. A primeira: é a única representante desta lista criada na Europa. A segunda: é a única mulher entre as minhas escolhas, e é a minha forma de combater esse misógino mundo dos super-heróis. Criada em 1962 pelo francês Jean-Claude Forest, tornou-se um best-seller imediato. Seguiu-se o escândalo: era um dos primeiros comics para adultos da história. Embora a personagem fosse baseada na figura de Brigitte Bardot, o papel de Barbarella no cinema foi entregue à jovem Jane Fonda. O filme, ironicamente, seria realizado por Roger Vadim, marido de Bardot.

Viajante intergaláctica, sensual e destemida, Barbarella apresentou-nos vários planetas e raças alienígenas (e a muitas outras coisas que não poderei aqui referir) quando foi exibida na RTP no início dos anos 80. A forte componente estética, visual e sonora de Barbarella viria a deixar as suas marcas na cultura pop — um jovem David Gilmour, guitarrista dos Pink Floyd, era um dos músicos de sessão de gravação da banda sonora. O maléfico criminoso Durand Durand viria a inspirar o nome de uma das mais inovadoras bandas de sempre. E por todas estas razões, Barbarella merece um lugar neste pódio, tanto que garanto que qualquer luta com os acima mencionados teria garantidamente nela a vencedora.

Filipe Melo é, em conjunto com Juan Cavia, autor da série de BD “As Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy”