Título: “A Filha de Estaline”
Autor: Rosemary Sullivan
Editora: Temas e Debates
Páginas: 616
Preço: 24,40€

filha de estaline

Numa reunião de tratoristas soviéticos de vanguarda, realizada a 3 de Dezembro de 1935, um dos participantes declarou: “Embora eu seja filho de um kulak [camponês abastado], continuarei a lutar sinceramente pela causa dos operários e dos camponeses”. Josef Estaline respondeu: “O filho não responde pelo pai”. Desse modo, o ditador soviético tentou acalmar o receio do tratorista, pois, como é sabido, os alvos das suas repressões eram não só os pais, mas também avós, filhos, netos, primos, sobrinhos, etc.

Mas essa “máxima” frequentemente foi violada, não só em relação aos filhos dos “inimigos do povo”, que eram aos milhões, mas também em relação aos seus próprios filhos: Iakov, Vassili e Svetlana. Nenhum deles se conseguiu livrar da presença do pai até à hora da morte e da sua sombra depois dela, transformando a vida dos filhos numa autêntica tragédia. No seu livro “A Filha de Estaline”, a escritora e biografa canadiana Rosemary Sullivan conseguiu abordar esse tema, principalmente no que diz respeito a Svetlana Estalina/Alliluyeva, de uma forma delicada, mas muito realista e humana.

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Svetlana nasceu e cresceu num “comunismo antecipado”, onde não tinha que pensar em nada, pois a sociedade soviética estava de tal forma estratificada que todos deviam saber o lugar que ocupavam. Ela era filha de um ditador omnipotente e omnipresente, por isso, do ponto de vista material nada lhe faltava. Vivia e era considerada uma “princesa”, embora os comunistas bolcheviques apregoassem que a monarquia tinha sido derrubada em 1917, o sistema por eles criado foi muito mais cruel do que qualquer monarquia feudal europeia, podendo ser comparado ao nazismo alemão.

E aqui está talvez a única divergência entre o meu ponto de vista e a análise da biógrafa. Rosemary Sullivan escreve: “Os bolcheviques que defendiam uma sociedade sem classes, haviam criado uma reprodução exacta do regime czarista: agora o povo eram os servos e os líderes viviam rodeados de um muro, dentro de fronteiras seguras”. Penso que falta aqui acrescentar um pormenor muito importante: o regime bolchevique foi muito mais cruel e sanguinário do que o czarista, mesmo no que diz respeito à classe dominante.

Claro que há excepções: Ivan o Terrível e Pedro o Grande, por acaso dois exemplos máximos para Estaline, que mataram os próprios filhos em nome dos “interesses nacionais”. O ditador soviético não matou nenhum dos filhos, talvez porque nenhum deles tenha posto em causa o seu poder absoluto. Nikita Khruschov, que o substituiu no cargo de dirigente do Partido Comunista da União Soviética e denunciou muitos dos seus crimes, escreveu:

Estaline era pouco sensível e negligente… amava-a [Svetlana], mas… a sua ternura era semelhante à que um gato sente por um rato”

Do ponto de vista material, Svetlana foi uma criança e jovem privilegiada: nada lhe faltava, vivia, tal como a parte superior da hierarquia bolchevique no chamado “comunismo pleno”: “A cada um segundo as suas necessidades, de cada um segundo as suas capacidades”. Porém, a filha do “czar vermelho” começou a sentir que não era uma criança e adolescente igual às outras. Andava guardada de dia e de noite, não podia brincar como as outras crianças, não se podia apaixonar ou casar com quem queria, mas o mais terrível ainda estava para vir.

Princesa sem direitos

Numa prosa de fácil leitura, mas muito bem documentada, a biógrafa canadiana acompanha o crescimento e desenvolvimento psicológico de Svetlana no seio de uma família que se tornava cada vez mais vítima da paranoia do pai. Parecia existirem todas as condições para ela ser feliz. A filha amava Estaline, admirava-o e orgulhava-se dele, mas esses sentimentos começaram a ser abalados com o suicídio da mãe, com a transformação de seus parentes queridos em “inimigos do povo”: tios, tias, primos, primas desapareciam sem deixar rasto. A jovem, por inexperiência, tenta implorar junto do pai pelas suas pessoas mais queridas, mas é por ele aconselhada a “não fazer de advogada”.

circa 1925: Nadezhda Alliluyeva-Stalin (1901 - 1932), the second wife of Joseph Stalin and mother of his children Vassily and Svetlana. They married in 1919 and she killed herself on November 8th, 1932. (Photo by Hulton Archive/Getty Images)

Nadezhda Alliluyeva-Stalin, a segunda mulher de Estaline e a mãe de Svetlana

A “princesa”, tal como no feudalismo, não tinha direito a apaixonar-se e a casar-se por amor, mas devia ir ao encontro dos desejos do ditador. Este odiava os judeus, grupo étnico que teve grande importância na revolução comunista de 1917, pois via nela o fim da opressão a que estava sujeito no Império Russo. Por isso, quando Estaline soube que a sua filha estava apaixonada pelo judeu Aleksei Kapler, conhecido escritor de guiões de cinema, fez com que ele desaparecesse por muitos anos nos campos de concentração soviéticos depois de ser acusado de “espião britânico”.

Mas não se fica por aí e humilha a filha de uma forma brutal em frente da ama: “Ah, ela ama-o!”, após o que esbofeteou a filha. Foi a primeira vez que lhe bateu. “Olhem para ela… o nível a que ela desceu […] Quando há uma guerra como esta, não faz outra coisa senão foder”.

Esta atitude do ditador soviético para com a filha, então com 16 anos, marcou-a para sempre. Svetlana acabou por se casar com outro judeu: Grigori Morozov, para fugir à solidão, mas o casamento durou apenas dois anos, para grande satisfação de Estaline. Dessa união nasceu um rapaz que recebeu o nome do avô: Josef, gesto que não sensibilizou muito Estaline. O “grande timoneiro” não tinha tempo a perder com os netos. Talvez em busca de equilíbrio espiritual e paz, Svetlana aceita a proposta do pai e casa-se com um filho de Jdanov, um dos dirigentes comunistas soviéticos mais odiosos por ter iniciado actos e campanhas inquisitórios em grande escala contra a intelectualidade soviética, mas também essa união é de curta duração.

A morte do ditador, a 5 de Março de 1953, provocou em Svetlana sentimentos contraditórios. Segundo a autora, “perdera o pai e sentia mágoa e terror, mas também sentia que chegava a “uma espécie de libertação”. Os corações e os espíritos de todos deixaram de carregar um peso e essa “libertação” também a afetariam a ela”. Essa libertação não chegou, pois Svetlana teve uma ingrata tarefa: integrar-se na sociedade soviética ao mesmo tempo que tentava fugir à sombra do pai. Rosemary Sullivan chama a atenção para a “necessidade compulsiva de se casar depressa em todos os seus relacionamentos amorosos” como forma de encontrar apoio e fugir à solidão: “Era como se, ignorando tudo o que a experiência lhe ensinara, acreditasse que o casamento lhe proporcionaria um bastião contra aquilo que, de outro modo, seria uma perda inevitável. No fundo, era uma órfã emotiva com uma fragilidade trágica que sempre ameaçou destruí-la”.

Más memórias

É por essa altura que Svetlana começa a escrever a mais importante obra da sua vida: Vinte Cartas a Um Amigo, que, como observa Sullivan, “não é uma confissão. É um exorcismo”. É difícil acreditar que a autora esperasse um dia publicá-lo, por isso trata-se de uma obra intimista e pessoal.

Durante um internamento no Hospital de Kuntsevo, onde se tratava a nomenclatura soviética e os camaradas de outros partidos comunistas estrangeiros, Svetlana conhece e apaixona-se por Brajesh Singh, comunista indiano. Mas a filha do “Rei Vermelho” não se deve casar com um estrangeiro, nem que seja com o filho comunista de um rajá, como era o caso. Aleksei Kossyguine, então primeiro-ministro soviético, mandou-a chamar ao Kremlin e disse-lhe:

O que andaste para aí a tramar? Tu, uma mulher jovem e saudável, uma desportista, não podias ter arranjado alguém daqui, alguém jovem e forte? Que queres desse hindu velho e doente? Não, somos todos totalmente contra isso, totalmente contra isso”. Casar com um estrangeiro, significava para os comunistas ‘internacionalistas’ soviéticos ‘trair a pátria'”

As autoridades soviéticas impediram o casamento, mas, a pedido de Indira Gandhi, permitiram a Svetlana ir à Índia lançar as cinzas de Singh para as águas do Ganges depois da sua morte, o último desejo expresso pelo comunista indiano.

Na Índia, a filha de Estaline, depois de grandes hesitações, decidiu procurar refúgio nos Estados Unidos e para isso decidiu entrar secretamente na embaixada desse país em Deli, mas aí é recebida com grande desconfiança. Svetlana enfrenta o choque entre os direitos do indivíduo e os interesses da superpotência norte-americana. Rosemary Sullivan escreve: “O sentido de oportunidade de Svetlana foi terrível. Embora ela possa ter sido o desertor mais famoso a denunciar o comunismo e, em circunstâncias diferentes, tivesse sido um inestimável instrumento da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a URSS, escolhera o momento errado. A Administração de Johnson estava no processo de ratificação de uma convenção consular com os soviéticos”.

Depois de uma atribulada viagem através de Itália e da Suíça, a cidadã soviética aterra nos Estados Unidos, uma civilização estranha, com princípios de vida completamente diferentes dos soviéticos. Como Svetlana não era uma “simples cidadã soviética”, a sua integração na sociedade norte-americana foi ainda mais complicada.

Svetlana Alliluyeva, the daughter of Joseph Stalin, at a press conference in New York City, USA, 1967. (Photo by Harry Benson/Express/Hulton Archive/Getty Images)

Svetlana Alliluyeva em Nova Iorque em 1967

O exemplo mais flagrante é a atitude de Svetlana face ao dinheiro, tão bem analisado nesta biografia. Na União Soviética, ela não sabia praticamente o que isso era porque recebia tudo do que necessitava enquanto membro da mais alta nomenclatura soviética. O Estado, mesmo após a morte do pai, pôs à sua disposição luxuosos apartamentos e casas de campo, ela não precisava de pensar no “pão nosso de cada dia”. Nos Estados Unidos, recebe um honorário milionário pela publicação do livro Vinte Cartas a Um Amigo, o que lhe permitiria viver desafogadamente durante toda vida se não se deixasse rodear por escritórios de advogados desonestos e “amigos da onça”, nomeadamente pelo seu marido americano Wesley Peters.

Também no Ocidente, Svetlana tenta escapar à “sombra do pai” fugindo às perseguições constantes de jornalistas, mudando de nome e de apelido: Lana Peters e, frequentemente, de residência e de país. Ela própria reconhece ter tido uma “vida de cigano”. Mas não conseguiu. E não conseguiu também sarar a ferida aberta pela separação com os dois filhos que deixara na União Soviética: Jossef e Katya. Assim como o Ocidente a tentou utilizar como meio de propaganda anti-soviética, também os dirigentes da URSS utilizaram os filhos para denegrir a mãe.

Svetlana esforçou-se para reconquistar a confiança deles ao ponto de arriscar regressar à União Soviética em 1984 juntamente com a sua terceira filha Olga, fruto do casamento com Wesley Peters. Como costumava dizer um dos seus maridos: Iuri Jdanov, “a entrada é gratuita. Mas pagas caro à saída”. Svetlana pagou logo caro à entrada porque as autoridades soviéticas não perderam a oportunidade para a utilizar como instrumento de propaganda na guerra fria que ainda não chegara ao fim.

Os filhos receberam-na com o máximo de frieza e de desprezo, tendo encontrado apenas um interlocutor sincero disposto a ouvi-la: Aleksandr Burdonsky, filho do seu irmão Vassily Estaline, que morrera vítima do álcool. “És filha de Estaline. Na verdade, já estás morta. A tua vida terminou. Não podes ter qualquer vida. Existes apenas em referência a um nome”, reconheceu ela ao seu sobrinho.

Fim

Depois de uma breve passagem pela Geórgia, terra natal do pai — onde procurava encontrar um refúgio, mas também não o encontrou — decidiu regressar ao Ocidente com a filha Olga, desta vez definitivamente. Mas os “demónios do passado” não a abandonavam. Ela assistiu à queda da União Soviética em 1991, ao início e fim do poder de Boris Ieltsin (1990-1999), ao aparecimento do coronel do KGB Vladimir Putin no Kremlin. Este último acontecimento ainda mais contribuiu para tornar os seus últimos anos num autêntico inferno.

Escreveu ela quando da chegada de Putin ao poder: “A Rússia está (na minha opinião) a resvalar de novo para o passado – com aquele horrível antigo ESPIÃO-DO-KGB a desempenhar agora as funções de Presidente!”. Na sua última entrevista antes, Svetlana respondeu à pergunta se perdoaria a seu pai da mesma forma irada com que antes respondera:

Não perdoo nada a ninguém! Se foi capaz de matar tanta gente, nomeadamente os meus tios e tia, nunca lhe perdoarei. Nunca…. Destruiu-me a vida. Quero dizer-lhe, destruiu a minha vida”

Morreu sozinha a 22 de Novembro de 2011, aos 85 anos, num hospital americano. Desaparecia mais uma figura trágica do séc. XX. A filha acabou por não escapar à sombra de um dos monstros mais sanguinários na história da Humanidade. Estaline sabia que mentia, como o fez inúmeras vezes, quando afirmou que “o filho não responde pelo pai”. Responde e das formas mais injustas e cruéis.

A Filha de Estaline, pela forma como está escrito e documentado, é um livro indispensável para compreender o funcionamento interior do comunismo, de uma das experiências sociais e políticas mais funestas na história, que só teve paralelo no nazismo. Apenas uma pequena nota negativa: a transcrição dos nomes russos para português ou a tradução de alguns locais de Moscovo. O nome de Estaline é Iossif em russo ou José em português. Por isso, não me parece correcta a transcrição Josef. E este não é caso único. Parece-me também não ser correcta a tradução de “Dom na Naberejnoi” como Casa no Aterro, mas deveria ser “Casa na Margem”, pois o seu nome deve-se ao facto de estar situada na margem do Rio Moskva. Porém, estas falhas em nada beliscam a qualidade deste livro.