Olha olha quem é ele, o campeonato nacional. Com que então de volta, hein?! Pois é, terminada a xaropada das seleções, entre jogos particulares e de qualificação para o Mundial-2018, lá voltamos à lenga-lenga das jornadas partidas em quatro dias. Começa esta sexta-feira, acaba segunda. De Arouca à Feira, 18 equipas discutem os prós e contras. Entre os grandes, o tricampeão Benfica é o primeiro a entrar em ação (Arouca, esta sexta às 20h30). Segue-se o Sporting (vs Moreirense, em Alvalade, sábado às 18h15) e só depois o Porto (vs Vitória SC, no Dragão, também sábado, às 20h30).

Isto de falar sobre acontecimentos futuros é cá uma salganhada. Mais vale explorar o passado. Quando nos convém, lógico. E hoje, convenhamos, tem até uma lógica tripartida. Hoje, 9 de setembro. De 1973. A revolução dos cravos ainda não saíra às ruas, Portugal vive ainda apoiado no mito do orgulhosamente sós, embora já se sinta algo no ar. Que só chegaria a concretizar-se em abril do ano seguinte. Antes, muito antes, em setembro de 1973, a revolução no futebol português, com a jornada mais extraordinária de sempre do campeonato nacional, com nenhum dos três grandes a conseguir pontuar nem sequer a marcar um golo que seja.

É a primeira e única vez que isso acontece em Portugal, num registo assustador e, ao mesmo tempo, revelador da força de Benfica, Porto e Sporting, que, juntos, só perderam dois campeonatos em 82 possíveis. Estamos a 9 de setembro de 1973 e vai começar o espetáculo. A expectativa é enorme. O Benfica apresenta-se como favorito por ter sido o campeão indiscutível da época anterior, com três pormenores arrasadores: sem qualquer derrota (28 vitórias e dois empates: 2-2 nas Antas, 0-0 na Tapadinha), 23 vitórias seguidas e ainda 18 pontos de avanço sobre o Belenenses, segundo classificado. Para além disso, a proeza de marcar muito (101 golos, dos quais 40 de Eusébio, que lhe permitem conquistar a segunda Bota de Ouro) e sofrer pouco (13). Detalhe do arco da velha: nem um golo marcado de penálti. Como se isso fosse pouco, aqui vai o dado mais desconcertante: o Benfica festeja o título a sete jornadas do fim. Quando? A 11 de março. Ou seja, antes da primavera. Aí está o primeiro e único campeão de inverno.

O Sporting quer apagar o quinto lugar de má memória e refugia-se na energia de João Rocha, eleito presidente do clube dois dias antes. Já o Porto quer saltar do quarto para o primeiro lugar e conta com o mago húngaro Bela Guttmann, o último treinador a fazer do FCP campeão nacional, em 1959. O Vitória FC apoia-se nos métodos de José Maria Pedroto, o artífice do terceiro lugar em 1972-73. No entender dos mais entendidos, há cinco candidatos ao trono. O sorteio determina que os três grandes joguem fora na jornada inaugural. O Benfica vai ao Bessa, o Sporting ao Bonfim e o Porto ao Restelo. Atenção a isto: cada jogador do Sporting recebe seis notas de mil escudos em caso de vitória; e os do Porto, três.

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Às 15 horas de domingo, começam os jogos. Ao intervalo, tudo 0-0. Prepare-se para a segunda parte. O brasileiro Salvador (Boavista) é o primeiro a marcar. Ao Benfica. E há aqui um elo de ligação interessante entre o passado e o futuro. Hoje, Rui Vitória não pode contar com Jonas, Mitroglou e Jiménez, todos por lesão. Naquele tempo, Jimmy Hagan não leva Eusébio, Vítor Baptista e Jordão por impedimentos vários (lesão, fora de forma e serviço militar). Voltemos ao herói salvador. O irrequieto avançado já dera água pela barba a Messias antes do intervalo. No banco, Hagan está aparentemente calmo enquanto ouve alguns apupos das bancadas, a maior parte deles relacionado com a titularidade do central no lugar de Rui Rodrigues, ex-Académica. Demora então cinco minutos até Salvador desbloquear o nulo, na sequência de um roubo de bola a Messias seguida de uma corrida para a área de José Henrique. O guarda-redes ainda adia o inevitável, com uma saída arrojada, só que o caprichoso ressalto volta aos pés do boavisteiro e é uma espécie de xeque.

Cinco minutos depois, 1-0 no Bonfim. Obra de Matine (Vitória), para azar do Sporting, que abre o campeonato da mesma forma que fecha o anterior: com uma derrota no Sado. O golo é de livre direto, a castigar falta dura e desajeitada de Bastos sobre José Maria. Bola no chão, barreira formada e cá vai disto: Octávio e Jacinto João ensaiam a manobra e cruzam a bola sem lhe tocar um cabelo. Embalado, Matine aplica um pontapé forte e colocado, junto ao poste do esfíngico Botelho, que se vangloriara superior a Damas numa tentativa (em vão) de fazer esquecer o grande capitão, de malas aviadas para Espanha, ao serviço do Racing.

Só falta o FC Porto cair também. E é o que acontece aos 75’, por obra e graça de Quaresma (Belenenses), o mesmo que já bisara aos portistas há menos de um ano (2-0). O central cansa-se de tanta monotonia, deixa momentaneamente os serviços defensivos, na companhia de Félix Mourinho mais Pietra, e vai lá à frente para resolver. Na baliza portista, mora Tibi. É eleito o melhor em campo pela imprensa e já o empurram para a seleção nacional, só agora justificada pela intermitência das exibições do ano anterior, por culpa da tropa.

Antes do fim, só mais uma surpresa, provocada pelo 2-0 do Boavista. Já com Rui Rodrigues no lugar de Messias, de modo a meter o outro central (Humberto Coelho) lá na frente, como um pinheiro, e depois de um golo bem anulado a Artur Jorge por fora-de-jogo, o Benfica consente o segundo golo no Bessa, num remate de Moura à entrada da área, mais em jeito do que em força, ao ângulo superior. Agora sim, xeque-mate.

Quando Jaime Loureiro (Porto), Sebastião Pássaro (Setúbal) e António Garrido (Leiria) apitam para o final de Vitória FC-Sporting, Belenenses-Porto e Boavista-Benfica, percebe-se que estamos perante uma jornada inédita do futebol português e jamais repetida. No fim da tarde, o líder do campeonato é o Beira Mar, fruto dos 4-2 sobre a Olhanense. Uma semana depois, a normalidade regressaria, sem grandes alaridos. O Sporting dá 3-1 ao Boavista, nos dois primeiros golos de Yazalde rumo à Bota de Ouro, no jogo de sábado à noite. No domingo, o Benfica despacha o Leixões por 3-0, na Luz, com bis de Jordão e Eusébio a fechar o marcador, ainda na primeira parte, enquanto Nóbrega salva a honra do Porto vs. Oriental. Essa época terminaria com o Sporting a conquistar o título nacional, com dois pontos de avanço sobre o Benfica (2.º), quatro sobre o V. Setúbal (3.º), seis sobre o FC Porto (4.º) e nove sobre o Belenenses (5.º).

É, aliás, a melhor época de sempre do Sporting. Junta o título de campeão com o de melhor marcador nacional (e europeu). Gracias Yazalde. Na Taça de Portugal, um caminho tranquilo até ao Jamor, onde o Benfica é vergado a um golo de Marinho, em pleno prolongamento (2-1). Atenção a este pormenor: Yazalde não faz qualquer jogo de Taça. Nem mesmo a final, já em viagem para a RFA, onde iria representar a Argentina no Mundial. Bem, campeonato e Taça é dobradinha. Vem aí o treble? Quase. A confirmar a bela época, o Sporting alcança as meias-finais da Taça das Taças, eliminado pelo Magdeburgo, vencedor da prova (2-0 ao Milan). A falta de sorte (um penálti falhado por Dinis e uma oportunidade flagrante desaproveitada por Tomé no jogo da segunda mão, na RDA) dita o injusto desfecho da eliminatória. Isso depressa é esquecido, pois o jogo é a 24 de abril. De 1974, cuidado. Informada do golpe de Estado em Portugal, no dia seguinte, a comitiva sportinguista voa da Alemanha democrática para Madrid e segue de autocarro para Badajoz, onde espera 40 horas para entrar no país. Como diria João Rocha: “Uma viagem destas não vem na Bíblia!” Um pouco como aquela primeira jornada em que os grandes não pontuam nem marcam.