“Escrever o que realmente me dá na gana escrever e, ainda por cima, sem prescindir de conseguir escrever um radical texto secreto, sabe-me sempre bem”. É uma sentença de Chet Baker Pensa na Sua Arte, livro de 2012 e publicado em Portugal no ano a seguir, ensaio no qual Enrique Vila-Matas desenha a procura de um sentido para os livros de difícil classificação que vai escrevendo ao mesmo tempo que elogia os autores que quiseram fazer caminho em territórios literários narrativos para além das convenções clássicas do que é um romance (como James Joyce, Samuel Beckett, Laurence Sterne, Witold Gombrowicz, W.G. Sebald, Roberto Bolaño).

Outras há no mesmo sentido, espalhadas por esse volume que classifica como sendo um dos mais difíceis, pela sua vocação exclusivamente especulativa, como esta: “A literatura foi sempre um excelente instrumento para medir tanto a aquisição de certezas como o seu abandono”. Finnegans Wake, de James Joyce, é aí apresentado como sendo o livro “mais aproximado que existe da realidade muda e clamorosamente não narrativa do mundo”. O caos, segundo Vila-Matas, exige ser representado de forma caótica, com citações muitas (processo iniciado com Montaigne), não numa história muito bem arrumada e contada, com personagens e redondas sinopses.

Marienbad Eléctrico, com tradução de Maria Manuel Viana, pouco maior do que esse volume (tem 111 páginas, enquanto o primeiro 132), é mais uma concretização dessas teses. E de outras que Vila-Matas desenrolou em Kassel Não Convida à Lógica, obra na qual relaciona a literatura com a arte contemporânea. O texto e a instalação. O livro leva ao extremo a sua tese de que tudo é narrável. Parte do diálogo que teve nos últimos anos com a artista francesa Dominique Gonzalez-Foerster. Conversas fundadas no café Bonaparte, em Paris, e depois continuadas em crípticos emails que, para citar as palavras orientadoras do parágrafo inicial, se tornaram em “pequenas festas sigilosas do espírito, sempre à espera do mais emocionante, sem nunca ignorar que ainda é possível ir ao encontro de tudo” e criaram muitas conexões. Trocas de ideias, pistas e impressões que se transformaram´em algo tão sério como lúdico, como é próprio do autor espanhol. Incluem rimas entre uma instalação da Tate Modern sobre o fim do mundo e o epílogo da literatura e a invenção de um hotel de um único quarto do Palácio de Cristal madrileno habitado por Rimbaud.

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“Marienbad Eléctrico”, de Enrique Vila-Matas (Teodolito)

“No livro ‘Marienbad Eléctrico’ falo de um quadro de Henri Matisse, ‘La Fenêtre Ouverte à Collioure’, que foi pintado, em 1905, em Nice, no qual aparece o interior de uma casa e também o exterior (o mar), por causa da janela, que está aberta. Cria um efeito que nunca se havia produzido na pintura: não existe uma separação clara entre o interior e o exterior”. Um pouco como o que se passa quando escreve. “O bairro imaginário é interior e exterior. Compõe-se ao mesmo tempo da casa onde escrevo e do exterior, da rua. Estou a escrever durante dois dias em casa e, quando saio, a primeira pessoa que encontro parece que está dentro de um conto meu”.

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Este é um fôlego de alguém que se formou a ver cinema e que achou que era altura de revelar a sua gratidão. Um escritor que se intitula um “cineasta secreto”. “Formei-me muito com o cinema independente dos anos 60 e dos anos 70”, explica. Partilha que se cruza com o que escreve:

“Venho de um tempo – na verdade, de um bairro da Paris dos anos setenta – em que Godard era quase tudo, e viver e filmar podiam ser uma e a mesma coisa”. Um dos filmes que mais o marcou foi “O Último Ano em Marienbad”, de Alain Resnais, pelo argumento de Alain Robbe-Grillet, inspirado em A Invenção de Morel , de Adolfo Bioy Casares. “O mais genialmente incompreensível de toda a história do cinema”.

No livro são várias as referências cinematográficas: de Fitzcarraldo, com Klaus Kinski, a Buster Keaton. De “Vive l’Amour”, de Tsai Ming-Liang a “O Estado das Coisas”, de Wim Wenders. Aliás, Wenders é nomeado no segmento mais comovente do livro, no qual é evocada uma visita ao hotel da costa portuguesa onde foi rodado, em 1982, o filme e onde pulsava “o imensíssimo deslumbramento pelo cinema”.

Não mostra qualquer dúvida nisto que tem afirmado sempre que pode: “Acho que o romance se esgotou com as grandes obras como ‘Vermelho e Negro’”, ‘Guerra & Paz’ e ‘Madame Bovary’. Não quero isto dizer que não haja obras boas, mas o género ‘romance’, no sentido clássico, individualmente, está esgotado”. O projecto de Vila-Matas, crítico da perpetuação do narrativa clássica como tentativa de organizar a desordem do universo e incentivador de uma arte literária que arrisca e busca uma autenticidade difusa e nebulosa, suscita naturalmente adesões e recusas. Há algo de que não pode ser acusado: de escrever sem pensar no que herdou de tradição literária. Como defende uma “escola”, em ambiente que recusa o comprometimento, abre-se aos críticos – aqueles que justamente ainda crêem nas possibilidades do romance mais normativo e que as praticam. Pérez-Reverte, por exemplo, acha que Vila-Matas, não sabendo escrever romances, usa de truques para criar um novo género. “Não sei se é verdade, mas é capaz de ter razão”, observa, sereno.

Nunca pensou à maneira de Bartleby: preferia não escrever? “Claro que toda a gente que escreve pensa-o”. E livrar-se do “mal de Montano”, a patologia da literatura. “Penso que não é uma doença. É uma maravilha”. Se resolvesse deixar de escrever, Enrique revela que diria a toda a gente que havia deixado a escrita e desceria à rua para perguntar às pessoas: porque é que não escrevo? “Seguia tranquilíssimo”. Ele que nunca pensou que seria traduzido. Conta que foi uma editora italiana que quis traduzir inesperadamente História Abreviada da Literatura Portátil. “Como vivi em Paris nos anos 70, fui muitas vezes às livrarias e não havia escritores espanhóis traduzidos. Nunca pensei ganhar um prémio, por exemplo”. Ultimamente têm surgido muitas referências positivas nos EUA, depois da tradução dos seus livros. Mesmo tendo chegado a um território cultural extenso, Vila-Matas não esquece quem o acolheu aqui, em Portugal: Manuel Hermínio Monteiro, na Assírio & Alvim, e Carlos da Veiga Ferreira, primeiro na Teorema, agora na Teodolito.

Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.