Cuidado, estamos em 1980. O Sporting acaba de se sagrar campeão nacional e só falta saber qual é a segunda força do nosso futebol. O dia 7 Junho serve para coroar o Benfica vencedor da sua 16.ª Taça de Portugal ante um FC Porto ainda traumatizado pela perda do tricampeonato. A 16.ª ou a 19.ª?
Calma, calminha gegé. Um avião verde (do Exército, e não do Sporting) sobrevoa o Jamor e deixa cair sobre o relvado a bola que mais tarde seria transportada para o balneário do FCP, debaixo da camisola do central Lima Pereira. Pelo meio, o brasileiro César faz o único golo da tarde, com um remate espontâneo e de ângulo difícil. Fonseca nem a vê, 1-0. É a primeira vitória aos dragões em seis jogos. Como (ainda é) habitual, um clássico desta importância deixa marcas. Assim, Alberto fratura a tíbia num lance casual com Frasco aos 10’ e Carlos Manuel é pisado e repisado por Lima Pereira mais Romeu na segunda parte. Resultado: nem um cartão amarelo. “Não quis estragar a festa”, explica o árbitro algarvio César Correia. Tudo isto é muito bonito, mas e então?
Calminha gegé. Na cerimónia da entrega da taça… Da quê? Da Taça. Em 1980 não há taça para ninguém. Um ilustre desconhecido da federação (Telmo Barreiros, de seu nome) leva-a para a Praça da Alegria, sede da FPF, com medo que a dita cuja seja dada como desaparecida no meio daquela multidão, com milhares de espectadores à beira do relvado. Tal como em 1996 (aqui por razões óbvias: very light), o Benfica vai para casa de mãos a abanar. A taça só é entregue a Humberto Coelho uns dias depois.
E o que tem ela de especial? De especial, especial, nada. Só um pormenor singular: a inscrição dos vencedores não começa em 1938-39, com a Académica (aquele célebre 4-3 ao Benfica nas Salésias), mas sim em 1921-22. Como assim? Mudam-se as regras a meio? Os títulos já não são Benfica (25), Porto (16), Sporting (16), Boavista (5), Vitória FC (3), Belenenses (3), Académica (2), Braga (2), Vitória SC (1), Beira-Mar (1), Leixões (1) e Estrela (1)?
Calminha gegé. Em 1938, a Federação Portuguesa de Futebol emite um comunicado: “Por virtude da reforma a que se procedeu no Estatuto e Regulamentos da Federação, os Campeonatos das Ligas e de Portugal passaram a designar-se, respetivamente, Campeonatos Nacionais e Taça de Portugal.” Ou seja, o Campeonato da I Liga é o Campeonato Nacional dos nossos tempos e assim o Benfica reúne mais três títulos para chegar aos atuais 35 e o Porto mais um, para atingir os 27.
Ou seja, os sete campeões das 17 edições do Campeonato de Portugal devem juntar-se aos outros da Taça de Portugal em qualquer livro de recordes e estatísticas. Não se faz distinção entre uma prova e a outra pelo simples facto de serem exatamente a mesma, ainda por cima disputada nos mesmos moldes (a eliminar), organizada pela mesma entidade (Federação Portuguesa de Futebol). O assunto é polémico e arrasta-se há anos, sem motivo para tal. Se a própria Taça de Portugal tem os nomes dos vencedores do Campeonato de Portugal de 1922 a 1937, qual é a dúvida? E quais são esses campeões?
Calminha gegé. A primeira final discute-se entre os campeões de Porto e Lisboa, isto é, FC Porto e Sporting. A primeira mão, na Constituição, começa 15 minutos mais tarde porque o extremo portista João Nunes chega atrasado para ir à romaria do Senhor de Matosinhos. No campo, um bis de Tavares Bastos dá a volta ao 1-0 de Emílio Ramos. Curiosidade: o árbitro é o inglês Barley. A segunda mão é uma semana depois (11 Junho 1922), no Campo Grande. O árbitro é o espanhol Montero e ganha o Sporting por 2-0, golos de Portela e Torres. Como não há ainda a regra dos golos fora, vai-se a finalíssima. Em Coimbra, com árbitro portuense, 3-1 para o FCP. Pronto, está encontrado o primeiro campeão, em 1922. Segue-se o Sporting, com 3-0 à Académica em Faro, numa prova já com outros campeões regionais, como os do Algarve (Lusitano de Vila Real de Santo António) e Madeira (Marítimo). Em 1924 a competição alarga-se a oito campeões e ganha a Olhanense (4-2 ao Porto, no Campo Grande). Em 1925 é o bis do FCP (2-1 ao Sporting em Viana do Castelo). Em 1926, 2-0 do Marítimo ao Belenenses no Porto. Em 1927, 3-0 do Belenenses ao Vitória de Setúbal no Lumiar. Há mais?
Calminha gegé. Em 1928, o Carcavelinhos (agora Atlético) derruba o Sporting, na Palhavã, com dois golos de Domingues (3-1), servido pelo luvas pretas Carlos Alves, o avô de João. Em 1929 é o bis do Belenenses, vs. União de Lisboa (2-1). Em 1930 estreia-se o Benfica, após prolongamento (3-1 ao Barreirense). No ano seguinte, o primeiro bis a sério, com 3-0 ao Porto, numa final em que Pinto Barbosa, engraxador ambulante de Lisboa e benfiquista convicto, vai para Coimbra a pé sem dinheiro para comer e a dormir ao relento. Na volta para casa, o plantel do Benfica paga-lhe a viagem de comboio na sua carruagem. Há mais? Outra vez, gegé? Vá, para abreviar: 1932 Porto (vs. Belenenses), 1933 Belenenses (Sporting), 1934 Sporting (Barreirense), 1935 Benfica (Sporting), 1936 Sporting (Belenenses), 1937 FC Porto (Sporting) e 1938 Sporting (Benfica). Em todos esses títulos, o formato é de Taça (a eliminar). Em todos esses títulos, a partir de 1926, entram clubes de todas as maneiras e feitios, não só os campeões regionais.
Honra lhes seja feita, os quatro títulos do Porto, os outros quatro do Sporting, os três do Benfica, os outros três do Belenenses e os de Carcavelinhos, Marítimo e Olhanense têm obrigatoriamente de estar no currículo da Taça de Portugal. Com a verdade desportiva, a Taça tem 28 títulos do Benfica, 20 do Porto e 20 do Sporting. O importante mesmo é honrar as vitórias do passado, sobretudo as de Marítimo, Carcavelinhos e Olhanense, pelo carácter inédito. Merecem-no. Eles, os clubes e respetivos adeptos. E, já agora, a Taça também.
A galeria dos campeões
A vitória do Olhanense em 1924 estende a Taça ao sul do país. Na final com o Porto (4-2 no Campo Grande), os heróis do golo chamam-se Delfim, Tamanqueiro, Gralho e Belo
O Marítimo perde as duas últimas finais da Taça, vs Sporting 1995 e Porto 2001. Antes, muito antes, em 1926, levanta o troféu numa final com o Belenenses (2-0), com golos de Fernandes e Ramos.
Carlos Alves, o luvas pretas original e avô de João, é a referência do Carcavelinhos, vencedor-surpresa da Taça em 1928. Nas meias-finais, 3-0 ao Benfica. Na final, 3-1 ao Sporting
Olhe lá bem este cenário bem catita. É o Belenenses a preparar-se para ganhar a terceira Taça, em 1933, numa final com o Sporting (3-1), no Lumiar
O Sporting é o rei das finais (10). No deve e haver, ganha quatro (como aqui em 1936, vs. Belenenses) e perde seis (metade delas com o Porto)
O Benfica é o único clube a ganhar a Taça em dois anos seguidos (1930 vs. Barreirense, 1931 vs. Porto). Na terceira e última conquista, 2-1 de virada sobre o Sporting em 1935
O Porto é o primeiro campeão, decidido numa finalíssima com o Sporting (3-1 no Bessa, após prolongamento). Ganharia mais três Taças: 2-1 ao Sporting em 1924 (Viana do Castelo), 2-1 ao Belenenses em 1932 (Coimbra) e 3-2 ao Sporting em 1937 (Coimbra)
A Taça de Portugal no seu esplendor, com a inscrição de todos os campeões da prova desde 1922