Apenas três das 20 declarações de transferências para offshores que ficaram ocultas representam cerca de 80% dos quase 10 mil milhões de euros que não foram controlados pelo fisco. E quatro das declarações feitas por instituições financeiras onde foram detetadas discrepâncias nas transferências para paraísos fiscais chegaram afinal à Autoridade Tributária já em 2016, com o atual Governo em funções. Numa só declaração, entregue ao fisco em julho de 2014 (relativa a transferências de 2013), passaram perto de 3 mil milhões de euros (2.960 milhões) sem fiscalização.

Foram estas algumas das conclusões dos dados atualizados sobre as transferências para paraísos fiscais que a diretora-geral de Impostos, Helena Borges, entregou esta terça-feira aos deputados.

As datas e os milhões não fiscalizados

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  • 18 das 20 declarações com falhas só deram entrada no sistema da Autoridade Tributária no verão de 2015, entre junho e início de outubro;
  • 7 declarações com falhas só chegaram ao fisco depois de outubro de 2015, ou seja, depois das eleições legislativas;
  • 4 declarações só foram entregues ao fisco em 2016, referindo-se a transferências feitas em 2012 (uma), 2013 (outra) e 2014 (duas);
  • As 4 declarações entregues já em 2016 representam cerca de 2.863 milhões de euros que ficaram fora do controlo do fisco;
  • Uma só declaração (de transferência feita em 2013, e entregue ao fisco em 2014) concentra quase 3 mil milhões de euros que passaram sem fiscalização;
  • 80% do dinheiro não inspecionado está concentrado em 3 declarações (uma de transferências feitas em 2013, e reportada em 2014, outra de transferências feitas em 2014, declarada em 2015, e outra de transferência feita em 2012 e apenas reportada em junho de 2016);
  • Maioria das declarações em causa é de entidades não residentes em Portugal, Helena Borges não esclarece se declarações são ou não do BES.

De acordo com informação nova trazida pela diretora-geral de Impostos à comissão de orçamento e finanças, as quatro declarações entregues já em 2016 representam cerca de 2.863 milhões de euros que ficaram fora do controlo do fisco, sendo que a maior discrepância (no valor de 2.781 milhões de euros), consta de uma declaração de substituição relativa a operações financeiras realizadas em 2012, mas que só foi entregue à Autoridade Tributária em junho do ano passado, antes da mudança do sistema informático que terá permitido detetar as falhas de reporte e controlo destas operações.

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Entre as 20 declarações onde foram identificadas falhas de quase 10 mil milhões de euros, 18 foram já entregues em 2015 e 2016, 11 ainda antes das eleições legislativas de outubro de 2015, sete já depois das eleições e quatro com o atual Executivo já em funções. A maior discrepância de valor reportado para offshores, de 2.960 milhões de euros, foi detetada numa declaração entregue em 2014 à Autoridade Tributária, relativa a transferências de 2013.

Se considerarmos apenas as duas declarações em que foram registados os valores mais avultados de falhas no controlo das transferências para o fisco, uma de 2013, entregue em 2014, e outra de 2012, entregue em 2016, elas representam mais de metade dos cerca de 9.800 milhões de euros que ficaram por tratar. Se juntarmos uma terceira declaração oculta onde foram identificadas diferenças de 2.016 milhões de euros, concluímos que apenas três declarações concentram 7.757 milhões de euros dos valores em falha, ou seja, respondem por 79% das discrepâncias identificadas pelo fisco, já por ordem do atual governo.

Não residentes explicam o grosso do valor não controlado. E o BES?

A diretora-geral de Impostos revelou ainda, durante a audição na comissão de economia e finanças, que a maioria das falhas de reporte e controlo identificadas nas saídas de dinheiro para offshores corresponde a operações feitas por não residentes.

Apesar de a prioridade da AT se focar nos valores enviados por contribuintes residentes, onde o risco de evasão fiscal é maior, Helena Borges reconhece que uma concentração tão elevada de montantes por declaração, e instituição financeira, merece uma atenção redobrada. A responsável do fisco reconheceu ainda que a AT tem dificuldade em controlar os bancos que não comunicam as operações dentro do prazo legal, até porque o universo varia. Além disso, o valor das coimas — começam em cerca de 750 euros, mas podem chegar aos 45 mil euros se houver dolo — não é dissuasor.

Helena Borges recusa contudo confirmar se o Banco Espírito Santo é a instituição financeira onde foram detetados valores mais avultados por registar. A sugestão foi dada por Eurico Brilhante Dias. O deputado do PS lembra que as sociedades de controlo do Grupo Espírito Santo estavam sedeadas fora de Portugal — a maioria no Luxemburgo.

Mas, escusando-se a detalhar sobre os destinos das transferência, assinalou que a maioria das foi feita por “empresas não residentes em Portugal”, sublinhando que “isso talvez seja um elemento relevante”. “Haverá outras leituras, mas este é um aspeto que me parece relevante”, acrescentou.

Durante a audição, o CDS foi quem mais puxou pela “questão das datas” das declarações, por entender que isso prova que entre 2011 e 2015, mesmo que as estatísticas tivessem sido publicadas por Paulo Núncio, não havia maneira de dar conta das discrepâncias registadas nas transferências porque elas só foram reportadas ao fisco em 2015. “As transferências em causa foram feitas entre 2011 e 2014, mas se olharmos para as datas em que essas transferências foram comunicadas é entre 2013 e 2016”, começa por dizer a deputada Cecília Meireles, levando Helena Borges a concordar.

“Houve uma declaração que não foi bem lida em 2013, outra em 2014 e depois há 14 declarações entregues de junho de 2015 ao fim de 2015 que não foram lidas corretamente (sendo duas de substituição)”, continua a dizer a deputada democrata-cristã para concluir: “Quer dizer que dos tais cerca de 10 mil milhões que escaparam, cerca de 6 mil milhões têm a ver com discrepâncias detetadas em declarações que só foram entregues entre junho de 2015 e 2016”. Logo, essas discrepâncias não podiam ter sido detetadas antes, uma vez que as declarações não tinham ainda sido entregues ao fisco.

Em resposta, Helena Borges confirma e acrescenta que a questão das datas mostra que “já havia um problema no sistema em 2013, não temos é explicação para o facto de em 2014 o número de declarações com falhas na leitura sem bastante maior”. Isto partindo do princípio que o número de declarações entregue em cada ano é “praticamente idêntico”.

Os partidos da direita questionam ainda porque não foram verificadas as operações de 2009 e 2010. A diretora-geral explica que a prioridade foi dada aos anos depois de 2012, porque o direito a cobrar impostos sobre os montantes transferidos para offshores antes dessa data já terá prescrito, uma vez que a alteração legislativa que prolonga o prazo só foi aprovada em 2012.

Fisco sem “evidência” do que provou a “anomalia”

Em causa estão 20 declarações sobre transferências para paraísos fiscais comunicadas devidamente pelos bancos ao fisco, relativas a transferências realizadas de 2011 a 2014, mas que não foram processadas da forma correta no sistema central do fisco. Parte da informação dessas declarações não terá chegado ao sistema de controlo da AT para ser tratada pela área da inspeção tributária. A audição de Helena Borges segue-se às audições do ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, do atual secretário de Estado Rocha Andrade, assim como dos ex-diretores do fisco, Brigas Afonso e Azevedo Pereira.

Helena Borges, que começou por dizer que “não há sistemas de controlo interno perfeitos”, disse desconhecer o que esteve na origem do “apagão” de informação em 20 declarações, lembrando que quando assumiu funções tinha sido feita uma auditoria (pela IGF) que não indicava qualquer indício de problema. “Não foi identificado nenhum problema, até ao momento não temos evidência nenhuma do que pode ter provocado esta anomalia“, disse, em resposta a perguntas do deputado social-democrata António Leitão Amaro. A esse nível, a diretora-geral do Fisco diz que é preciso esperar pelos resultados da auditoria da IGF que está agora em curso.

“Em abril de 2016, quando as estatísticas entre 2011 e 2014 foram publicadas, os números disponíveis [nessa altura] não deixavam a evidência” de que uma parte da informação não passava do sistema central para o local, disse, explicando que só foi possível detetar essa anomalia em 2016 quando foi feita uma alteração do sistema informático.

A responsável do Fisco disse ainda que a atualização do software, feita em julho, “não foi uma decisão estratégica”, mas que decorreu de se ter “aproveitado o momento para introduzir atualizações tecnológicas”, depois da publicação de uma portaria que alterou o modelo 38 (referente às declarações transfronteiriças). Quando questionada pelo deputado social-democrata António Leitão Amaro sobre quando é que o Fisco teve conhecimento de que poderia haver um problema, Helena Borges respondeu que foi em outubro de 2016.

A diretora do fisco rejeitava assim qualquer indício de intervenção humana na anomalia, uma vez que a transferência dos dados do sistema local para o sistema central da AT, onde a inspeção decorre, é feita de forma “automática”. Para lá da parte que é feita automaticamente, contudo, não põem as mãos no fogo.”A montante e a jusante dos automatismos não posso excluir nada”, disse. Em todo o caso, sublinhou, o mecanismo de processamento dos dados recebidos pelos bancos (dados que chegam ao fisco através das declarações de modelo 38) funciona através de um software, sem qualquer intervenção humana.

Segundo Helena Borges, que se recusa a divulgar os critérios através dos quais a AT decide que declarações são ou não inspecionadas num nível mais profundo, havia, no leque de declarações de 2014 que não foram inteiramente transcritas, algumas que estavam dentro dos critérios para serem inspecionadas. “Se aquelas declarações tivessem sido transcritas seriam alvo de inspeção?”, perguntou o deputado socialista Fernando Anastácio. “Algumas sim. Das declarações de 2014 que já concluímos a seleção, sim”, respondeu.

Lembrando que só depois do sistema informático ter sido mudado, em julho de 2016, é que se detetou as “discrepâncias”, Helena Borges dá desta forma destaque à importância da publicação de estatísticas para, de forma mais “transparente”, se poder dar conta da informação. Quando as estatísticas voltaram a ser publicadas, em outubro, se percebeu a diferença. “As discrepâncias eram tais que percebemos que algumas declarações estavam a ser tratadas apenas parcialmente”, diz.