Há uma grande dose de risco que uma produção indie pode assumir, que o mercado mainstream nem sonha em arriscar – – seja ela musical, cinematográfica ou videolúdica. Independentemente dos géneros em que determinada obra se movimente, a contenção de risco exigida por estúdios, editoras e acionistas, obriga a que o cumprimento de fórmulas de sucesso fale mais alto no processo de produção.

O horror é um desses casos, com os grandes blockbusters a sentirem a obrigação de cumprirem com determinados preceitos que pouco ou nenhum avanço artístico provocam. Se no cinema a produção indie trouxe fôlegos inimagináveis a diversos géneros, dos quais o horror é, sem sombra de dúvida, um dos grandes “vencedores” da experimentação independente, também nos videojogos esta visão é trazida para longe do tom ação-terror que o mercado mainstream se auto-obriga a produzir.

O estúdio indie polaco Bloober Team SA já tinha contribuído para a “revolução” do horror nos videojogos, com a sua experiência cinematográfica na primeira pessoa decorrido num ambiente vitoriano intitulada Layers of Fear. O sucesso crítico e comercial permitiu-lhes embarcar numa aventura de produção mais ambiciosa, uma nova experiência também ela cinematográfica lançada há uma semana com o nome >observer_.

>observer_ é um caso caricato de influências. A sua construção cyberpunk é perfeitamente identificável com Blade Runner, e as primeiras horas de jogo denunciam o quão próximo este se encontra da obra de Ridley Scott. E não precisamos de contar com o facto de que o ator holandês Rutger Hauer interpreta o protagonista, o Detective Daniel Lazarski, ao qual não empresta apenas a voz mas também a fisionomia.

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A semelhança com Blade Runner encontra-se naquilo que é a maior conquista do pequeno estúdio polaco com este >observer_: a criação de um ambiente cyberpunk conciso, conexo com as origens visuais do próprio subgénero ainda interligadas à visão de Scott. Um retro-futurismo recheado de elementos dos anos 1980, onde a tecnologia e o amanhã se misturam com CRTs, leitores de cassetes, posters, tipografia e música desse período.

>observer_ decorre em 2084 em Cracóvia, um futuro distópico perfeitamente cyberpunk com um abismo social imenso, onde Dan Lazarski é levado a investigar um condomínio decrépito nas favelas da cidade à procura do paradeiro do seu filho Adam. O ambiente de todo o condomínio é coeso dentro da sua destruição e degradação, o que contribui para potenciar as muitas sub-histórias que se vão desenrolando à medida que tentamos saber mais sobre o “nosso” filho.

Este é um jogo para maiores de 18 anos, onde o horror não passa por jump scares mas pelo peso das múltiplas histórias que vamos conhecendo dentro deste condomínio — onde ficamos encarcerados durante todo o jogo. Em >observer_ o futuro é negro, perverso, pesado, e a nossa parca interação com os inquilinos através dos video-comunicadores vai-nos demonstrando essa realidade. Canibalismo, parafilias, violência, tráfico de órgãos e de droga, prostituição, são algumas das línguas faladas nesta Cracóvia ficcional de 2084, onde os humanos se vão mesclando com máquinas, vivendo no limbo entre essas duas realidades.

Lazarski é mais do que um mero detective, é um observador, um agente especial que se consegue conectar diretamente aos cérebros das vítimas para levar a cabo aquilo que chamam de neuro-interrogatórios. E é a partir do momento em que começamos a entrar na cabeça das recém-vítimas dos estranhos assassinatos que decorrem no condomínio que >observer_ progride da abordagem cyberpunk de Ridley Scott para uma reinterpretação do body horror de David Cronenberg, evoluindo de um reconhecível Blade Runner para a o ambiente aterrador orgânico de Videodrome. Daí oscila entre o terror visual dos segredos que vai desenterrando no condomínio e o terror “neurológico” e surrealista das longas incursões pelas memórias das vítimas.

Apesar de ter poucos momentos em que estejamos verdadeiramente a ser perseguidos ou “em risco de vida” toda a construção do ambiente de >observer_ torna-o uma das melhores interpretações de horror futurista, exponenciada e muito pelas neuro-interrogações cheias de luzes e efeitos estroboscópicos e psicadélicos, à medida que descortinamos as narrativas que cada vítima tem para contar pelo meio de pedaços e reconstruções de memórias.

Com um ambiente cyberpunk aterrorizador exímio na sua execução, >observer_ acaba por ser vítima da sua própria experimentação. Os múltiplos enredos são interessantes, ainda que dentro da sua curta duração a experiência de cada um dependa do nível de exploração que fez das muitas histórias que se abrem. É fácil ficarmos como o protagonista, de tal forma absorvidos nas sequências de neuro-interrogatórios que facilmente perdemos a noção do nosso objetivo primário: encontrar Adam.

A interpretação de Rutger Hauer naquele que é o seu primeiro papel num videojogo também fica numa espécie de limbo. Durante todo o jogo cruzamo-nos fisicamente com duas ou três personagens, mas dialogamos com várias dezenas através de video-comunicadores, o que obrigou à gravação de pelo menos uma dezena de acting do veterano ator, para além de tudo o que ele “conversa” connosco. Há um distanciamento emocional recorrente, que ainda que se ajuste ao ambiente, muitas vezes parece inconsequente com algumas situações.

Visto que este é um jogo de exploração na primeira pessoa, >observer_ traz-nos uma má solução para a interação com os poucos objetos que o permitem, e quase que temos de andar de olhos encostados a quase tudo para conseguir que o pequeno ícone indicador de ação surja no ar. Perde-se demasiado tempo a caçar esses ícones pelas salas, o que prejudica a nossa imersão no ambiente.

O último problema, e talvez o mais prejudicial para todas as grandes conquistas que este pequeno estúdio polaco alcançou, remete para questões de ritmo. As incursões à memória das vítimas são longas demais, com demasiados trechos de coisa nenhuma pomposamente disfarçados com efeitos visuais, que acabam por soar mais a fait divers do que a conteúdo propriamente dito. A narrativa acaba por ser vítima da enganadora abertura exploratória do jogo, e são mais as vezes em que andamos a deambular erraticamente pelo verdadeiro labirinto de degradação que são os diversos pisos do edifício, do que a avançar em qualquer um dos casos que vamos descobrindo.

>observer_ demonstra que a dimensão de um estúdio ou orçamento disponível não são argumentos para o resultado final. A forma visceral como este Blade Runner (se fosse realizado por David Cronenberg) decorre, auxiliado pela excelente construção cénica e pelo exímio ambiente acabam por envergonhar equipas e jogos com orçamentos milionários, que não conseguiram chegar sequer perto da aura de horror que este jogo alcançou.

A presença de Rutger Hauer acaba por mostrar-se apenas mais um dos riscos que uma equipa indie pode correr, e onde o seu voice acting salva muitas vezes a representação desajustada das cenas. Ainda que com falhas evidentes e que o prejudicam de alcançar a totalidade do seu potencial, os dois finais possíveis desta história acabam por compensar toda a narrativa e responder-nos à questão que colocamos no título deste artigo. E é no fechar dos panos que nós e Daniel Lazarski descobrimos, afinal, quem observa o observador.

Ricardo Correia, Rubber Chicken