Se durante séculos e séculos os mitos populares, a literatura, as artes ensinavam que viver sozinho era moralmente errado e causa de grandes sofrimentos e ostracismo social (especialmente quando se tratava de mulheres), hoje esta forma de vida tornou-se comum, símbolo de sucesso e independência financeira, de novas dinâmicas sociais e comunicacionais.
Em 2011, estimava-se que 277 milhões de pessoas vivessem sozinhas, em especial nos países mais ricos como a Suécia, a Noruega, o Japão o Reino Unido e os EUA, onde quase metade das casas ocupadas têm apenas um habitante, como demonstra um estudo do Euromonitor International, publicado no The Guardian. Nesta verdadeira revolução social destacam-se as mulheres, que até aos anos 50 do século XX raramente viviam sozinhas e hoje caminham a passos largos para serem a maioria. Nos EUA, em 2011, eram 18 milhões de mulheres contra 14 milhões de homens.
E se, nos interstícios desta realidade, prevalece o preconceito de que viver só significa isolamento, tristeza, depressão, tal como prevalecem as pressões sociais para o casamento e a procriação, a verdade é que aqueles que optam pela “vida a um” preferem falar dos prazeres e das compensações de ter um tempo e uma casa só para si.
O livro Going Solo: The Extraordinary Rise And Surprising Appeal Of Living Alone, da autoria de Eric Kinenberg, ou as ilustrações de Yaoyao Ma Van (que se tornaram virais na internet) demonstram que, ao contrário daquilo que nos educaram para pensar e sentir está errado: a tendência humana parece ser para viver sozinho e não em comunidade.
Apesar de sermos um animal gregário, as nossas necessidades de sociabilidade não passam necessariamente por vivermos acompanhados. Daí que quanto mais rico é um pais, quanto mais facilidade têm os indivíduos de assegurar a sua subsistência, mais comum é a decisão de viver sozinho. Sejam divorciados, solteiros, viúvos, sejam pessoas que mantêm relações amorosas estáveis mas preferem viver cada uma em sua casa, sejam os intrépidos misantropos ou os solitários encartados, todos apontam esta experiência como positiva e não negativa. Mas há exceções, é claro.
Para as mulheres, o acto de viverem sozinhas era um verdadeiro anátema até há bem pouco tempo e havia que fazer tudo para escapar a tal destino. Aceitar qualquer tipo de relação, viver com familiares, conventos, lares de idosos. Tudo menos viver sozinha. Nas últimas gerações esse panorama mudou e, não obstante dificuldades financeiras, ou de saúde as mulheres estão a aceitar pagar o preço da sua independência.
É frequente as pessoas preferirem ficar no seu espaço a irem viver com familiares. Eric Kinenberg explica mesmo que são precisamente as pessoas que já passaram por períodos a viver dentro de um casamento ou a partilhar casa com amigos, colegas e namorados que mais valorizam a experiência de serem como “freiras com um convento só para si”, como lhe chama o escritor irlandês Colm Tóibín, que descreve aqui, os prazeres de dispor de um espaço só seu sem ter que obedecer às ordens e sensibilidades de ninguém.
Estelle Vargas, tradutora luso-italiana a viver em Milão, falou com o Observador sobre os motivos que a levam a sentir que viver sozinha é uma vantagem:
Eu não estou só, vivo sozinha, é outra coisa, os meus interesses não rodam à volta desse facto. Faço coisas, frequento gente. Tenho hábitos e rituais, isso sim. Não sei se os tenho porque vivo sozinha, ou porque gosto de ter momentos no quotidiano que me dão conforto. O espaço vazio da ausência de outras pessoas, para alguns será motivo de tristeza, para mim é um espaço fundamental. Eu gosto de estar com as pessoas, de partilhar momentos com elas, mas depois tenho uma necessidade higiénica de as afastar, de preservar o meu espaço interior. Encontrá-las e partilhar é muito bom e gratificante, mas depois quero voltar ao meu espaço, ao meu silêncio, ao meu isolamento.”
No final do século XIX, o sociólogo Emile Durkheim alertava para a crescente tendência dos indivíduos para o isolamento nas grandes cidades. Escapou-lhe que poucas décadas depois essa seria uma forma de vida comum a milhares de pessoas nos países desenvolvidos, até porque ninguém poderia prever que as sociedades humanas seriam atingidas por duas revoluções que lhe mudariam os contornos: a revolução sexual e a revolução das comunicações.
Ambas deram origem a novas formas de relações amorosas, familiares, laborais, alteraram drasticamente as relações de poder dentro dos casais, aumentaram o número de divórcios, fizeram decrescer significativamente o número de nascimentos. O projeto moderno de libertar os indivíduos para que cada um explore o seu potencial e encontre a felicidade aliou-se a uma estrutura económica que privilegia as escolhas individuais, onde o “cuidar de si” ganhou primazia face às instituições seculares como a família ou o casamento.
“Só quem sabe viver consigo mesmo sabe viver com os outros”
A frase é de Séneca, filósofo latino, e foi escrita há mais de 2000 anos no seu emblemático livro Cartas a Lucílio. Claro que Séneca fala de uma capacidade interior de estar consigo mesmo, de um auto-conhecimento que leva à criação de relações mais verdadeiras com os outros. Ainda assim, muitas das pessoas que vivem sozinhas referem que esta experiência modificou profundamente a sua vida social, o tipo de interações que estabelecem com outros, a forma como estão nas relações amorosas, a sua capacidade de liderança, de organização.
Ulika da Paixão Franco, assessora de comunicação, angolana a viver em Lisboa desde criança, contou ao Observador como, apesar de sofrer de uma doença crónica (Anemia das Células Falsiformes), optou pelo risco de viver sozinha:
Viver sozinha sempre foi um dos meus sonhos. Desde criança que me via vestida de executiva e numa casa só minha. Por isso quando sai de casa da minha mãe para viver sozinha não precisei de nenhum ajustamento mental. Adorei desde o início. Gosto de chegar a casa e de me esticar na carpete da sala a ouvir música, de passar o fim de semana a ler jornais. Mesmo quando adoeço, quando tenho que chamar ambulâncias, ir para o hospital, mesmo sabendo que posso ter complicações cardíacas a qualquer momento não deixo de querer ter o meu espaço. Há alturas em que há solidão sim, é normal, faz parte do perfeito gozo da nossa liberdade e autonomia. Nesses momentos arranjo o que fazer: vou até à beira rio, vou ao café, tento arranjar um programa com amigos. Viver sozinha deu-me uma força interior, uma capacidade de liderança e organização que eu não sabia que tinha.”
O cinema, a literatura, séries de TV como “O Sexo e a Cidade” glamourizaram a vida das mulheres solteiras e independentes. De repente, as meninas já não brincam “às mamãs” mas brincam com Barbies, que viajam, têm as suas próprias casas e guarda-roupas e um namorado enfadonho de nome Ken, que basicamente não serve para nada.
Segundo o estudo já citado acima é no segmento entre os 18 e os 34 anos que mais gente está a optar pelo estilo “happy solo” que é o contraponto ao pejorativo “solteirão/solteirona. Os millennial só trocam a casa familiar pela casa individual e, mesmo os que desejam ter uma família, consideram essa vivencia fundamental, como nos disse Sónia Silva, de 26 anos, web designer, que veio há poucos anos de uma vila alentejana para Lisboa:
“Depois de viver com a minha família, depois dos anos de faculdade a partilhar casa com colegas quando mudei para aqui senti que estava finalmente em casa. Sempre gostei de estar sozinha e não gosto de estar acompanhada durante muito tempo. Gosto de não ter que ter planos, obrigações, programas, discussões sobre a divisão das tarefas domésticas. Chateia-me a pressão social que ainda existe para as mulheres não ficar sozinhas, e como isso lhes incute o medo de ficarem sozinhas. Por causa desse medo há muita gente a tomar decisões importantes como casar e ter filhos com uma enorme ligeireza. Também há mulheres e homens que se envergonham de viverem sós, que inventam relações que não têm para não destoarem do que fazem os amigos ou as redes sociais.”
Segundo Eric Kinenberg, estamos a viver apenas os anos iniciais destas novas formas de organização social e por isso muita da discussão ainda assenta na ideia do sofrimento e do isolamento de quem vive só. As famílias preocupam-se, os amigos pressionam, ficamos aflitos quando os mais velhos ficam sós nas suas casas e raramente aceitamos o seu desejo e direito a viverem no seu espaço.
Vários analistas apontam esta fragmentação social como causadora de doenças mentais como a depressão, a ansiedade. Vasco Luís Curado, psicólogo e psicoterapeuta, questionado pelo Observador, diz “que a nossa necessidade da comunidade está ligada à nossa sobrevivência. Uma vez asseguradas as suas necessidades básicas os indivíduos tendem a procurar lugares onde tenham mais espaço. É uma questão também biológica: quanto menos espaço disponível, mais facilmente se desenvolvem doenças, agressividades, tensões, violências físicas e psicológicas. No entanto, a vida social é-nos fundamental, os seus desafios são essenciais para a contínua sofisticação dos nosso pensamento, conhecimento, linguagem, vida interior. Creio que a nossa natureza de animais gregários não mudou, o que mudou foram as formas e os rituais da nossa vida em comunidade.”
Inês Salvador, gestora de empresas, mora em Lisboa e depois de uma relação longa está a viver sozinha há 5 anos. Entrevistada pelo Observador, faz questão de destruir alguns mitos sobre quem vive só, especialmente as mulheres:
Há a ideia errada de que quem está sozinho está sempre disponível para saídas, relações, festas, etc, que está sempre desesperado por companhia. Errado. É o contrário: o prazer de viver sozinha faz-me rejeitar cada vez mais a vida social, tornei-me muito mais seletiva nos momentos e nas pessoas que escolho para companhia. Comecei a viver sozinha aos 17 anos quando fui para a faculdade. Isso dá-nos uma enorme possibilidade de nos conhecermos melhor. Raramente ligo a televisão. Gosto da espessura do silêncio, de tomar café e fumar cigarros a destempo, de fazer o que me apetece sem ter o julgamento de ninguém. De qualquer forma, a solidão de viver sozinha nunca é tão dramática, tão agressiva como estar só dentro de uma relação. Isso é o pior de tudo.”
Esta ideia de que o que importa na nossa relação com os outros é a qualidade e não a quantidade do tempo que passamos com eles é cada vez mais uma evidência. Estelle Vargas corrobora esta ideia:
“O que é mau é viver sem possibilidade de relação com os outros. Se as pessoas pudessem escolher viver sozinhas, com uma vida íntima gratificante, um círculo de amizades presente, não pensariam duas vezes, viveriam sozinhas. Outra coisa é viver sozinho por imposição dos eventos e não por vontade própria. O motivo principal das pessoas não viverem bem o facto de estarem sozinhas é o juízo dos outros, sofrem pelo facto de serem consideradas umas pobres coitadas, quando na realidade há mais prós em estar sozinho, do que contras.”
O mesmo estudo referido no The Guardian aponta ainda para outros aspetos positivos da vida de solteiro/a: quem vive só participa mais ativamente na vida pública e comunitária, gasta mais dinheiro, habita preferencialmente nos centros da cidade e não nos subúrbios, usa menos automóveis e gasta menos energia.
Os “guilty pleasures” da vida a solo
Colm Tóibín conta que nunca imaginou descobrir que o grande prazer da sua vida era “passar o dia na cama a ler, a levantar-se para ir até o frigorífico e dali ao sofá, colocar a sua música preferida, seguir o rumo dos seus negrumes e obsessões sem ter ao lado alguém a reclamar que aquilo é deprimente”.
Viver sozinho esconde muitos prazeres que quem sempre viveu acompanhado desconhece. Carmen Callil, de 73 anos, fundadora da editora da inglesa Virago Press, afirmava numa entrevista: “Nunca me aborreço quando estou em casa sozinha e sigo as minhas excentricidades, as minhas centenas de livros”. Efetivamente, Callil, tal como todas as nossas entrevistadas, conhecem os prazeres únicos da leitura e sabem que quem tem livros e gosta de ler nunca está sozinho. A leitura, o trabalho, o desporto, ter uma vida ocupada e desafios fazem com que haja menos espaço para a melancolia, para a angústia de chegar a uma casa silenciosa ou as crises existenciais dos domingos ao fim de tarde.
O culto das excentricidades, o egoísmo, a má alimentação, inflexibilidade, descontrole, intolerância à frustração, dependência das redes sociais, falta de objetivos de vida, frustrados, falhados, há todo um compêndio de problemáticas que a psicologia e a psiquiatria já atribuíram aos que habitam a solidão mesmo que estes não se sintam sós. Na mesma entrevista ao Guardian o apresentador de televisão e DJ inglês Alex Zane, rejeita estas teorias mitos: “Não é uma questão de egoísmo mas de de conheceres a ti mesmo, de fazeres o que tens a fazer sem esperares que ninguém te siga ou te ampare nas tuas decisões”.
Se é certo que a tendência ainda é julgar pela negativa os hábitos e rituais de quem vive só, também há cada vez mais assertividade nos que assumem este prazer: “A melhor parte de viver sozinha é o silêncio e depois ligar a música às seis e meia da manhã sem medo de acordar ninguém”, diz Sónia Silva. A música também é essencial para Ulika, “especialmente no inverno, gosto de me deitar no chão a ouvir o António Zambujo, quando estou com dores também é assim que me acalmo e adormeço. No verão gosto de comer gelado deitada no sofá a ver as minhas séries preferidas. Acima de tudo não faço fretes. Acho que fui mesmo feita para viver sozinha.”
Inês Salvador confessa que “raramente cozinha, come o que calha, quando estou em casa leio, desenho, escrevo. Tive um gato que foi uma linda história de amor. Implemento plenamente as minhas vontades, sou dona do meu reino, posso não ter horário, fazer um bolo à meia-noite. Posso tudo num mundo que é só meu.”
Já Estelle Vargas afirma: “Sinceramente não sinto a solidão, nem advirto nenhum peso, lutei bastante durante anos para não ter o dever moral de comparecer em almoços de família e fazer fretes emotivamente demolidores, que francamente quando penso no domingo, por exemplo, penso num momento libertador!”
De entre os aspetos negativos está claro a questão financeira: morar sem partilhar despesas é mais difícil. Implica ter casas mais baratas e mais pequenas, mobiliário mais simples, resolver sem ajuda os momentos difíceis como quando se está triste, doente, angustiado. Dependendo da forma como se encara viver sozinho pode ser a mais tremenda experiência da nossa vida adulta e o caminho para ter relações mais saudáveis. Relações que não resultem do medo de estar só, porque, como diz Carmen Callil, “não me preocupo em morrer sozinha, porque toda a gente morre sozinha”.