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E se Harry Potter nunca tivesse existido?

É a "Guerra dos Tronos" de uma geração. Caramba, é o "Star Wars" de uma geração. Se nunca tivesse existido, pergunta Susana Romana, o que seria de todos nós?

Fui uma adolescente extremamente parvalhona. Atenção: eu acho que os adolescentes devem ser parvalhões, pelo menos qb, devido ao risco da parvoíce recalcar e estalar em plena idade adulta, com prejuízos de maior monta. Mas ainda antes das redes sociais e do seu desdém pela moda do momento, já eu achava que tudo o que era muito popular só podia ser péssimo. Toda eu era um enorme rolar de olhos perante o mainstream, sem sequer perceber muito bem o que isso era. Essa parvoíce quase me impediu de desfrutar de alguns dos melhores exemplos de cultura pop do virar de século.

Entre outros mimos, quase ia passando ao lado do fenómeno Harry Potter (o tal que ganha agora um novo capítulo, com “Harry Potter and the Cursed Child”, adaptação em livro de uma peça de teatro). Só a palavra “fenómeno” atiçava o meu preconceito como um rottweiler desvairado. Se era para todos, não era para mim, um raríssimo floco de neve suburbano que até lia revistas estrangeiras. Até que, num momento de aborrecimento enquanto estava numa casa que não era minha, peguei no primeiro volume, uma edição da Presença que ainda por cima tinha uma capa extremamente infantilizada.

harry potter e a pedra filosofal capas

Diferentes capas da edição portuguesa do primeiro livro da saga Harry Potter (da Presença)

Um mundo sem Harry Potter é um mundo pior. O meu mundo e o mundo em geral. É uma das mais influentes e determinantes peças de ficção da viragem de século (a publicação da série original de sete livros vai de 1997 a 2007). É o “Senhor dos Anéis” de uma geração. Caramba, é o “Star Wars” de uma geração. É o “Guerra e Paz” de uma geração? Bom. Os livros são, tal como o seu protagonista, um herói improvável.

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Em 1997, o conceito de “magia” era tão abrangente e destruturado que o seu apelo perdia-se para qualquer pessoa com mais de cinco anos. E foi resolvendo essa falha que JK Rowling foi mais esperta que os outros: estrutura.

Em 1997, magia era brega. Magia era um tipo a tirar coelhos da cartola, era uma fada ressequida e de personalidade plana a agitar uma varinha de condão de contraplacado, era quanto muito um David Copperfield de lábios cheios de gloss a fazer desaparecer a Estátua da Liberdade em directo na televisão. O conceito de “magia” era tão abrangente e destruturado que o seu apelo perdia-se para qualquer pessoa com mais de cinco anos. E foi resolvendo essa falha que JK Rowling foi mais esperta que os outros: estrutura.

Por um lado, não vale tudo na magia que se pratica no Harry Potter. Há regras que implicam, por exemplo, não poder fazer os mortos voltarem à vida, pelo que a magia não cura a dor, a tensão, a revolta, a dúvida, a culpa e todas essas características que tornam os personagens em pessoas. E por outro lado, não são sete livros de aventuras: é uma epopeia em sete livros, um jogo narrativo onde tudo se conjuga com um grau de detalhe quase obsessivo-compulsivo.

JK Rowling reacendeu, em formato de livro, o binging que hoje em dia associamos às séries – despender horas de consumo, ler/ver muito de seguida, aguardar angustiadamente por mais, discutir teorias e detalhes com outros convertidos. Com a incrível característica de que essas discussões se podiam dar entre uma menina de 10 anos e um vendedor de seguros de 32.

J.K Rowling numa das apresentações da peça de teatro "Harry Potter and the Cursed Child"

Getty Images

O impacto da saga do feiticeiro de óculos na cultura pop actual não se fica por aqui. Harry Potter é provavelmente o ponto de viragem que embala até hoje o sucesso de séries como “Guerra dos Tronos” ou “Penny Dreadful”, no sentido em que é um super herói que remonta para o Antigo em detrimento do Futurista. Não há fatos prateados, tecnologia de ponta, luzinhas vanguardistas a piscar. Os super heróis mais populares eram sobretudo representações do futuro ultra moderno (ou apocalíptico) que nos aguardava – ou eram, quanto muito, um sinal de modernidade no mundo que reconhecemos como nosso contemporâneo.

Harry Potter marimba-se no smartphone e prefere a coruja, sujeito a eventuais críticas do PAN. Nós, reles muggles (o nome dado aos humanos sem poderes mágicos), até podemos ter um computador para brincar – mas os eleitos que apanham o Hogwarts Express na plataforma 9 ¾ têm colossais bibliotecas clássicas (como a recriada agora no lançamento na Livraria Lello) em vez de tablets. É difícil perceber a que ano fomos parar no mundo de Potter, assim como não é óbvio o século no qual se passa a “Guerra dos Tronos”. Claro que estes estão longe de serem os primeiros exemplos de ficção e entretenimento com sucesso que decorrem numa versão do passado, mas massificaram e romperam sem dúvida com a ideia pré-concebida de que o futuro das histórias que o grande público queria ouvir estava, pleonasticamente, no Futuro.

Perceber que Scabbers, o ratinho de estimação de Ron Weasley há 12 anos, era na verdade Wormtail, um dos ajudantes do vilão Voldmort, está ao nível do choque que senti quando sentada sozinha num sofá em Mem Martins – com oito anos e muito para lá da minha hora de ir dormir – ouvi vir da televisão a célebre frase “Luke, I’m your father”

O tal livro de capa horrorosa que eu trouxe de uma casa que não era minha foi lido de um dia para o outro. Na tarde seguinte estava na Fnac a comprar os quatro livros do Harry Potter que existiam até então, ainda na dúvida se os escondia numa embalagem de papel como fazem os bêbados dos filmes com uma garrafa de whisky que querem disfarçar. Como é que tive tempo nos dias seguintes para ir às aulas ou dormir foi um milagre. Nunca antes livros de aventuras teoricamente para crianças me tinham surpreendido. Mais: me tinham desafiado. Quando li Harry Potter e a Pedra Filosofal e percebi que estava muito longe de ter adivinhado o seu volte-face final, senti-me quase tola. Um livro infantil tinha-me passado a perna. Não era óbvio, não era comodista, não tratava o seu leitor como um papalvo. E estava eu então muito longe de compreender o jogo de xadrez que é toda a saga.

O terceiro volume, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (o meu preferido), é uma lição em construção de personagem e em complexidade narrativa. Todo o livro é uma surpresa. Perceber que Scabbers, o ratinho de estimação de Ron Weasley há 12 anos, era na verdade Wormtail, um dos ajudantes do vilão Voldmort, está ao nível do choque que senti quando sentada sozinha num sofá em Mem Martins – com oito anos e muito para lá da minha hora de ir dormir – ouvi vir da televisão a célebre frase “Luke, I’m your father”.

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A capa do “último” volume das histórias da Harry Potter

O dia no qual foi lançado Harry Potter e os Talismãs da Morte, o último da saga original (e na altura o último dos últimos, ponto final), foi ao mesmo tempo um dia emocionante e antecipadamente nostálgico. Era o fim. Na altura estava a tirar um curso de guionismo em Nova Iorque. Comprei o calhamaço de capa dura, que levava para todo o lado na ânsia de o terminar. Sempre que me sentava a ler num local público, fosse ele a carruagem de metro ou a relva do parque, alguém vinha meter conversa comigo. Juro, sempre.

Perguntavam se estava a gostar, se achava que o protagonista ia morrer, se já tinha chegado àquela parte em que… Chega. Tive de terminar a leitura fechada no meu minúsculo quarto sem ar condicionado e que consistia basicamente num colchão no chão (o mercado imobiliário nova iorquino é ele próprio uma saga de aventuras). O Harry Potter é de todos e se nunca tivesse existido o que seria de nós? Mas naquele momento do adeus precisava que fosse só meu.

Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa

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