“Os miúdos vêm direitos a mim a rirem-se, dão-me cartas, vêm a correr ter com o Pai Natal, é a melhor coisa isso”. Oh, as palavras nostálgicas e bonacheironas de um senhor de barbas longas, pai de filhos, avô de netos, barriga fofa como uma filhós gigante e um abraço onde cabem duas crianças. Ou então não. Henrique Viegas tem 19 anos. Zero barriga, barba nem vê-la.
Encontrámos o Henrique, barriga e barba falsas, no Príncipe Real, com uma coruja farfalhuda, branca e dourada, presa ao pulso. Os miúdos assustam-se, tanto com o Pai Natal como com a coruja. Também há uma águia, imponente. Tem a altura que vai da cinta à cabeça de um adulto. O susto estraga o negócio, que é que os miúdos tirem fotos com os bichos, então Henrique aproxima-se devagar, ou deixa os pais trazerem os miúdos pela mão, enquanto lhes vão explicando, nas dezenas de línguas que falam, que os animais estão domados e, em princípio, não mordem.
A equipa, quatro ou cinco duendes e o Pai Natal, recebe uma percentagem sobre o valor total das fotos tiradas sempre que este ultrapasse os 750 euros.
Estamos aqui há meia hora sentados num banco do miradouro de São Pedro de Alcântara à espera do Pai Natal. Às 11h30 Henrique disse que só às 13h, mas às 13h os colegas ainda não tinham chegado de almoço e depois de eles chegarem ele ainda demorou a despir o fato. Só mais uma familiazinha, só mais dez euros. Os duodécimos do Pai Natal, que não vem da Lapónia mas da margem sul. Aprendeu a domar águias e outros animais no Aquashow, no Algarve, e veio aqui parar através dessa empresa.
“É preciso um Pai Natal eu faço. Nunca tinha feito antes, mas é muito giro encarnar as fantasias dos putos. Imagina: alguns ficam totalmente eufóricos, malucos mesmo, sem voz até, porque alguns é a primeira vez que veem um Pai Natal de carne e osso, na cabeça deles eu sou ‘o’ Pai Natal”, diz Henrique.
Atrevemo-nos a pregar-lhe o crachá de Pai Natal mais novo do país. Ele também acha que “é capaz de ser”, até porque na agência para a qual trabalha não há menores de 18 anos e “as outras também acho que não contratam menores… pode haver acidentes”.
Finalmente, vamos almoçar. O Pai Natal vai até à sua casinha. Volta à civil, de calças de fato de treino cinzentas mais largas em cima do que em baixo, sapatilhas, casaco de capucho, gorro e óculos de sol que não irá tirar o almoço todo. À cinta, uma bolsa vermelha do Benfica, o símbolo com as cores já gastas, a barba branca a espreitar. Tira as luvas que usa para segurar as águias e as corujas e nas falanges, escrito para sempre: “1904”.
“Hoje já tirámos 40 fotos, são 400 euros, hoje está-se a trabalhar bem, só tenho meia hora de almoço, tenho que voltar daqui a nada. Olhe, quero uma tosta de queijo e tomate, se faz favor”, diz Henrique à empregada do restaurante.
Acabou o nono ano e encontrou este trabalho e está feliz por gostar dele porque “há montes de gente jovem desempregada ou a receber o ordenado mínimo ou a fazerem coisas que detestam”. Não é o caso de Henrique que, além de gostar do trabalho, quer continuar na empresa.
Os patrões, diz ele, são quase como pais. “Às vezes pedimos adiantamentos ao salário e, se pedimos muitas vezes, eles vêm logo perguntar em que é que andamos a gastar o dinheiro, mas não como se nos estivessem a controlar, é que o pessoal é todo super novo e os patrões sentem-se responsáveis por nós”, diz Henrique.
Come a correr, desaparece pela Rua da Rosa, a ver se chega à casinha do Pai Natal “sem nenhum miúdo o topar”.
“Posso vender os meus pais?”
Descendo até à Praça do Município encontramos Vítor Leitão, que apresenta uma faustosa barba cinzenta que é mesmo dele, coisa que verifica dolorosamente todos os dias porque os miúdos lha puxam. Está sentado dentro de uma casinha cheia de túneis onde um adulto só consegue entrar de gatas, que é também uma coisa que muitos fazem.
“Vêm aqui adultos feitos, com 40 anos, sentam-se ao meu colo devem achar que pesam o mesmo que um miúdo. Tudo para o Facebook”, diz Vítor, a rir-se.
Os miúdos apanham os detalhes todos. “Duas miúdas inglesas no outro dia vieram aqui e disseram ‘Tu não és verdadeiro porque a tua barba não é totalmente branca’” e outro miúdo disse ‘Mas eu já vi o Pai Natal ainda agora em outro sítio, como é que já estás aqui?’, são super perspicazes, temos que ter a resposta pronta na ponta da língua”.
Mas também há histórias tristes.
“Apareceu aqui um miúdo de alguns 7 anos, entrou e perguntou: ‘Ó Pai Natal, posso vender os meus pais?’. Eu fiquei um bocado intrigado, mas a mãe estava a entrar e ele fugiu. Passados uns cinco minutos, a mãe estava lá fora a falar com alguém, ele entrou ali pelo túnel e ficou lá dentro a falar para mim, de onde a mãe não o pudesse ver: ‘Ó Pai Natal, podes vender os meus pais ou não?’ E eu pedi para ele me explicar melhor aquilo e ele responde: ‘É que eles passam a vida a discutir e eu não tenho descanso’”. Vítor acrescenta:“O miúdo disse aquilo de dentro, não era para ser parvinho, até porque se escondeu da mãe”.
E houve ainda aquela rapariga que só queria uma prenda. “Olha, Pai Natal, eu só quero uma prenda. Como andas sempre lá por cima com o trenó e as renas podes dar um beijinho ao meu pai que está no céu?”.
É o primeiro ano que Vítor Leitão, engenheiro informático de 60 anos, faz de Pai Natal. Está contratado por uma agência de publicidade: já fez “montes de anúncios, a carros, a supermercados, com a Federação Portuguesa de Futebol”. Agora é Pai Natal mas aqui finge-se menos. Não é tanto — ou não é só — um papel, não há guião possível com os miúdos.
“Tens que te manter puto”
A caminho do Chiado, ali na Rua do Ouro, encontramos mais um Pai Natal, vestido de vermelho como manda a lei, debrum dourado nos punhos, com um enorme cinto preto e de sacola às costas. Não nos diz o nome nem o destino.
“Eu sou o Pai Natal porque estou em Lisboa, agora mas também sou ‘Papai Noel’, ‘Nicolas’, ‘Nicóláu’, ‘Father Christmas’, ‘Santa’ quando ando por aí a entregar prendas a meninos de outros países”, diz o Pai Natal.
“Eu não dou entrevistas, tenho muito que fazer, mas digo-te: ser Pai Natal não é só deixar crescer a barba e vestir um fato vermelho. Não podes deixar morrer a criança que tens dentro de ti, tens que emanar amor, magia, compreensão e solidariedade”, diz o Pai Natal com uma voz rouca, dicção perfeita, a fazer pausas entre substantivos como se lá estivessem vírgulas.
OK Pai Natal, isso é o que toda a gente quer. Mas como é que o senhor alimenta essa criança?
— “Tens que te manter puto. Porque é que as pessoas andam aí todas de trombas, mal encaradas, e discutem e fazem mal uns aos outros? Porque deixaram morrer as crianças dentro deles, as crianças não fazem mal”.
— “Não há rapazes…”
— “Não há rapazes maus, exatamente. Um senhor muito importante disse isso”.
Trabalha no mesmo sítio há treze anos mas é Pai Natal há mais que isso — “Oh, tanto tempo, há muito”. Leva isto muito a sério. “Olha, digo-te mais uma coisa: quando chega a agosto começo a contar os meses para o Natal e aí a partir de dia 10 de dezembro começo a ficar assim triste, nostálgico, porque sei que mais quinze dias e isto acaba tudo”, lamenta.
O Pai Natal sem morada e sem nome anda à volta pelas ruas da baixa para nos despistar, já voltámos às mesmas ruas onde nos encontrámos pela primeira vez. Não sabemos o seu destino.
Só mais uma pergunta: onde deixou as renas? “As renas trazem o Pai Natal durante a noite, quando não há poluição nem luzes acesas nem barulho, e voltam para um prado verde onde vão pastar descansadas até me virem buscar. Eu toco o sino de determinada forma e elas veem”, diz o Pai Natal já a afastar-se.
“Este ano não me portei muito bem”
Estamos perto do Cais do Sodré. Na fila para o cacilheiro está mais um Pai Natal anónimo. “Sou o Pai Natal, ele mesmo, encontraste o verdadeiro Pai Natal”. E podemos sentar-nos consigo? “Podem pois, mas eu tenho que ir pôr os duendes a trabalhar, tenho que fazer uma lista dos brinquedos que estão aí nessas cartas”, diz, apontando para um saco de veludo vermelho cheio de cartas. Mostra-nos algumas. Muitas falam de brinquedos, quase só de brinquedos. Mas há algumas que o Pai Natal guardou por baixo da gola felpuda do casaco vermelho que lhe assenta mal por ser tão grande.
“Olha esta”, diz, e passa-nos uma das que traz guardadas:
“Querido Pai Natal,
Este ano não me portei muito bem. Os meus pais tão sempre a dizer isso. Andei há porrada no recreio. Os meus pais forão falar com a professora e agora tou de castigo sempre no quarto. Quero ter prendas para o ano então quero a prenda agora de arrangares outra escola com outros meninos porque nunca me chamam para jogar futebol com eles e eu quero jogar a mesma e eles batem-me”.
Além de ir a algumas escolas primárias, este Pai Natal também faz serviço comunitário em hospitais e orfanatos. “Como é que dás uma família a alguém? Ou como é que ‘paras as picas’? Venho sempre de lá doente, muitas vezes penso em não ir, é uma impotência terrível, mas tenho que ir, consigo ver que eles se esquecem dos problemas quando eu lá estou”, diz enquanto guarda de novo a carta no peito.
“Ser Pai Natal é ser parte de uma fantasia que infelizmente se desvanece quando crescemos, que é no fundo ter fé na bondade, no bem e no mal, e ter fé em que o bem será recompensado de alguma forma”, diz o Pai Natal. Depois, cruza-se com dois miúdos no cais que se lançam às suas pernas com tanta força que quase o desequilibram.