Com a morte de Mário Soares, acaba o século XX em Portugal. A sua vida resumia quase todo o século. Soares ainda tinha conhecido as grandes figuras da I República, políticos como António Maria da Silva (que não admirava), ou intelectuais como Jaime Cortesão (de quem se considerava discípulo). Estava em fotografias com Norton de Matos (em 1949) ou com Humberto Delgado (em 1958). A ditadura salazarista prendeu-o, deportou-o e exilou-o. Depois de 1974, venceu e perdeu eleições, foi primeiro-ministro, foi Presidente da República. Por isso, desde pelo menos 1996, quando acabou o seu mandato presidencial, que quase todos desejaram tratá-lo como uma personagem histórica. Mas Soares, por mais avançado nos anos, nunca se dispôs a cumprir o papel de pai fundador do regime, a pairar sobre querelas e confrontos. Enquanto esteve activo, e esteve-o quase até ao fim da vida, fez questão de tomar partido e de dividir as opiniões. Ainda foi candidato presidencial, contra tudo e contra todos, em 2006, aos 82 anos. Ainda protagonizava polémicas em 2014, aos 90 anos.
No fim, todos tinham razões para o admirar, e todos tinham razões para o criticar. O político que confrontara Vasco Gonçalves na Fonte Luminosa, em Julho de 1975, foi o mesmo que, em Novembro de 2014, quase quarenta anos depois, defendeu José Sócrates diante da prisão de Évora. Houve quem, nos últimos tempos, referisse a sua idade como atenuante. Sim, Soares envelhecera. Mas não mudara. Houve, na sua vida, uma coerência que convém reconhecer. Não era uma coerência doutrinária, como a que tornou Álvaro Cunhal célebre entre a burguesia portuguesa, mas um outro tipo de coerência, que explica, entre outras coisas, porque é que, tendo submetido o país à austeridade em 1983, ao lado do PSD, a contestou em 2013, ao lado do PCP.
O “enfant terrible” da democracia
Tanto como o clássico “pai fundador” do actual regime, Mário Soares foi também o seu “enfant terrible”: o “sapo” que muitos tiveram de engolir, a pedra no caminho de quase todos. No presente regime democrático, Soares enfrentou e contestou toda a gente: em 1975, Álvaro Cunhal; em 1980, o general Eanes, mas também Francisco Sá Carneiro; em 1994, Cavaco Silva, mas também António Guterres; em 2014, Pedro Passos Coelho, mas também António José Seguro.
Não houve ninguém em Portugal, da direita à esquerda, que não tivesse tido Soares como adversário num momento ou noutro. Todas as correntes de opinião o acusaram, incluindo o partido que fundou. Para a direita nacionalista, Soares era o principal responsável civil da descolonização de 1974. Para o PCP, era o culpado do fracasso do PREC em 1975 (Álvaro Cunhal jamais lhe perdoou). Muitos dos seus correligionários socialistas lamentaram a sua negligência ideológica e o seu favorecimento da direita em 1978 (governo com o CDS), em 1983 (governo com o PSD) ou em 1987 (quando proporcionou a primeira maioria absoluta de Cavaco Silva). E a direita passou a encará-lo como um dos seus adversários mais radicais na fase final do governo de Cavaco Silva (1994-1995) e, mais tarde, durante o governo de Passos Coelho (2011-2015). Estes rancores têm uma razão: toda a gente, em certo momento, pensou que podia contar com Mário Soares, apenas para ficar desiludida com ele. Porque Soares nunca quis representar o papel que os outros lhe destinaram na história.
Oposicionista sem quixotismo
Se quiséssemos resumir a vida política de Mário Soares, poderíamos dizer que ele contestou todas as grandes propostas e situações de poder do seu tempo. Foi esse o papel histórico deste filho-família, literato e advogado da Baixa de Lisboa. Antes de 1974, combateu a ditadura salazarista, mas também a hegemonia que o PCP procurou exercer sobre a oposição. Depois de 1974, resistiu ao domínio do PCP aliado ao militarismo progressista, mas contrariou também, quanto pôde, o reformismo liberal que a direita tentou protagonizar. Em geral, embora nem sempre, conseguiu ser o polo à volta do qual se conjugaram forças variadas para resistir ao que pareciam ser movimentos irresistíveis: primeiro, o terceiro-mundismo do socialismo militar; a seguir, a europeização do liberalismo económico.
Para Mário Soares, a oposição parece ter sido, não só uma atitude natural, mas um vantajoso ponto de partida em política. Em 1969, foi sondado por marcelistas liberais para se aproximar da ditadura, provavelmente em troca de um tratamento privilegiado num hipotético processo de liberalização conduzido por Marcello Caetano. Recusou, talvez porque não confiasse em Caetano, mas também porque não quis deixar ao PCP o monopólio da resistência à ditadura. Em 1974, aconselhou o general Spínola a que chamasse o PCP para o I Governo Provisório, mais uma vez para não deixar os comunistas aproveitar a oposição numa época que se previa agitada, com a descolonização e a crise económica. Em 1978, quando o general Eanes forçou a sua demissão de primeiro-ministro, no meio de um ajustamento negociado com o FMI, declarou que se sentia “livre como um pássaro”. Todos julgaram que ironizava. Era provavelmente mesmo assim.
Donde é que vinha este culto da oposição? Soares percebeu que, numa sociedade plural e complexa, todo o poder suscita dúvidas e resistências, criando oportunidades de acção política. Por outro lado, as suas ideias de liberdade e de anti-capitalismo, derivadas da síntese do radicalismo republicano de 1910 com o progressismo marxista de 1945, faziam de facto muito mais sentido como ideias de oposição, do que como ideias de governo.
Através dos seus protestos e impugnações, Soares marcou o desenvolvimento do actual regime democrático em Portugal: num primeiro momento, nos anos 70 e 80, impediu o estabelecimento de uma ditadura militar influenciada pelos comunistas, e ajudou à fundação de uma democracia pluralista, com uma economia de mercado, enquadrada pela NATO e pela União Europeia; depois, a partir da década de 90, identificou-se com todos os que contestavam a adaptação do Estado e da sociedade portuguesa à globalização e à integração monetária europeia. Ajudou a fazer assim a democracia no que o regime teve de melhor, mas também de pior.
Inicialmente, Soares acreditou que o seu Partido Socialista, fundado em 1973, seria um pequeno partido, fiel da balança entre uma grande democracia-cristã e um grande Partido Comunista, como na Itália. Era talvez a posição que mais lhe teria agradado, em que a influência seria maior do que a responsabilidade. Mas nada se passou assim. Em vez disso, o PS tornou-se em 1975, não só o partido mais votado, mas o único partido verdadeiramente nacional, com votos no sul e no norte do país (por contraste, o PPD, o CDS e o PCP eram sobretudo partidos regionais). Em 1976, quando formou governo, discutiu-se a sua vocação “mexicana”, isto é, o seu suposto projecto de fazer do PS um partido como o Partido Revolucionário Institucional, durante décadas no poder no México. De facto, Soares acabou por passar os primeiros vinte anos do regime sobretudo em oposição — mesmo quando foi primeiro-ministro ou Presidente da República: no governo, entre 1976 e 1978 e entre 1983 e 1985, esteve quase sempre em confronto com o Presidente da República, o general Eanes; na Presidência da República, entre 1986 e 1996, acabou por chocar com o governo chefiado por Cavaco Silva. Foi como “opositor” que Soares exerceu o poder.
Soares tem assim pouco a ver com as figuras tutelares de outros regimes portugueses, como Fontes Pereira de Melo, durante a Monarquia Constitucional, ou Salazar, sob o Estado Novo. Fontes, em liberdade, e Salazar, em ditadura, foram políticos de governo. Soares foi acima de tudo um político de oposição, mesmo quando estava no governo. Por isso, para além dos filiados no seu partido, Soares reuniu à sua volta personalidades em transição, desgarrados das suas famílias partidárias de origem: ex-marcelistas, ex-CDS, ex-comunistas, ex-esquerdistas, ex-PSD. Todos procuraram nele o político sempre disponível para fazer aliados em todos os campos no combate contra alguém.
A tendência de Soares não foi tanto a de constituir um poder dominante, mas a de reagir aos poderes tendencialmente dominantes em cada momento. Foi assim que se afirmou e adquiriu poder e influência. Porque nunca o fez quixotescamente, para perder. No Verão de 1975, teve uma epifania numa praia do Oeste, cheia de famílias e de automóveis: num país com uma classe média veraneante, o comunismo não era possível. Kissinger julgou-o destinado a ser um Kerensky. Ele sempre soube que era possível ganhar. Mais de trinta anos depois, em 2011, terá tido outra intuição. Perante uma população envelhecida e uma Europa dividida, ter-se-á convencido de que a rejeição do ajustamento negociado com a troika seria outra causa auspiciosa. E não hesitou em misturar-se com os seus antigos inimigos comunistas na Aula Magna, nem em permitir-se os maiores excessos verbais. Era um homem de oposição, mas sempre de uma oposição concebida para ganhar. Nunca foi um homem de causas perdidas.
Se nunca foi um Dom Quixote, também nunca foi simplesmente um irascível, dominado pelo simples gosto de contrariar. Em 1970, no exílio a que o condenou o governo de Marcello Caetano, evitou isolar-se e estendeu a mão a toda a gente, incluindo o PCP, que o atacara ferozmente no ano anterior, durante a guerra entre a CDE e a CEUD em Lisboa. Nunca perdeu o instinto de sobrevivência política. Viu-se isso em 1974, quando conseguiu definir uma plataforma política abrangente: fim da guerra em África, através da negociação com as guerrilhas, pluralismo partidário (“valor essencial”), e “abertura à Europa”. Percebeu, antes da direita democrática, que não valia a pena resistir à retirada militar de África, apesar do custo para as populações europeias e africanas. Mas percebeu também, antes da maior parte da esquerda, que não seria viável nem desejável um regime que se afastasse demasiado dos padrões da Europa ocidental. Por isso, tendo-se disposto a ser um “socialista” avançado, preferiu o socialismo com “rosto humano” e “realista”. Foi-lhe assim possível, em 1975, conspirar ao mesmo tempo com a Igreja Católica, a diplomacia americana e os moderados do MFA. Com isto, ajudou a evitar que a campanha de 1975 contra o domínio comunista tivesse o contorno de um choque entre a esquerda e a direita, como a guerra civil de Espanha em 1936. Foi, sem dúvida, o seu maior contributo para o desenvolvimento em Portugal de uma democracia europeia.
No célebre debate da RTP com Álvaro Cunhal, em Novembro de 1975, Soares aludiu ao que poderia ter sido o seu futuro caso se tivesse disponibilizado para dar cobertura à conquista do poder pelo PCP: talvez um dos “Prémios Lenine” com que a União Soviética costumava distinguir os “idiotas úteis”. Soares não era idiota, nem tencionava ser útil. Os comunistas nunca lhe perdoaram, alguns socialistas nunca o perceberam, e muita direita não soube agradecer-lhe.
Republicano, laico, socialista e … político
Perguntar-me-ão: muito bem, Soares teve sempre uma atitude de oposição, e contribuiu assim para construir em Portugal a actual democracia; mas o que era ele, de facto? Soares fez muita questão de se definir: “homem de esquerda”, ou, mais detalhadamente, “republicano, laico e socialista”. Era, com efeito, de esquerda, sem os alçapões biográficos de François Mitterrand, que no fim da vida revelou as suas raízes fascistas. Soares vinha de uma família republicana, com um pai que foi governador civil do partido de Afonso Costa. No imediato pós-guerra, como muitos filhos de famílias oposicionistas, teve uma passagem pelo Partido Comunista. Mas quando o partido o procurou empurrar para a clandestinidade, recusou: percebeu que seria reduzido a uma simples condição de funcionário obediente. Não era essa a sua ideia da política.
O primeiro termo da sua definição é “republicano”. O republicanismo de Mário Soares referia-se, naturalmente, à herança da República de 1910-1926. Mas Soares declarou-se “republicano”, nesse sentido, quando deixou o PCP, a partir da década de 1950, numa época em que a forma republicana já não dividia. O seu laicismo também esteve sempre limpo dos rigores anti-clericais de 1910. Por isso, republicanismo e laicismo nunca o limitaram nos seus contactos políticos, como haviam limitado os velhos republicanos de 1910. Antes e depois de 1974, Mário Soares tratou com católicos e monárquicos sem problemas.
Soares dizia-se ainda “socialista”. Mas nunca esteve condicionado, como os sociais-democratas do norte da Europa, por uma máquina sindical pesada (em 1974, aliás, o PS quase não existia para além de um grupo de amigos). Republicano, laico e socialista, Soares pôde assim fazer política com todo o virtuosismo e desassombro, sem constrangimentos de doutrina ou organização. Como político, era capaz de charme mas também de brutalidade. Implacável num momento, era magnânimo no outro.
É fácil imaginar Mário Soares no fim do século XIX ou no princípio do século XX, ao lado de José Maria de Alpoim ou de Cunha Leal. Foi político como o seu amigo Júlio Pomar foi pintor. Inicialmente, como muitos dos jovens da sua geração e meio social, Mário Soares imaginou que podia ser escritor. Cultivou, aliás, as referências literárias e os gostos artísticos típicos dos profissionais liberais do princípio do século XX. Mas a política constituiu, de facto, a razão da sua vida. “Desde criança que fui atingido pela política”, escreveu em 2014 no prefácio ao seu livro Cartas e Intervenções Políticas no Exílio. Em 1950, no seu primeiro livro, As Ideias Políticas e Sociais de Teófilo Braga, examinou a questão do “primado da luta política sobre todas as outras actividades”.
Mas a política que, para usar a sua expressão, “atingiu” Mário Soares, não foi uma política qualquer. Ainda sob o Estado Novo, mesmo quando fazer política não podia ser, para ele, mais do que conspirar, a sua ideia de política correspondia já à de uma sociedade democrática e aberta: foi a esse tipo de política que sempre aspirou. Queria predominar e mandar – reservar o governo para os seus amigos, preencher o Estado com os seus apoiantes? Sem dúvida, como qualquer político. Mas, ao contrário de outros, quis predominar e mandar sempre num regime pluralista, com eleições livres e debates abertos.
Na primeira “Carta de Paris” publicada no jornal “República” em 1971, explicou aos seus leitores portugueses que os debates, conflitos, antagonismos e “complicadas coligações dos partidos” da França eram uma fonte de dinamismo e até de força. Em Portugal, predominava então uma cultura anti-política, partilhada igualmente pelos tecnocratas da ditadura e pelos revolucionários da oposição: a maior parte das figuras da vida pública considerava a pluralidade e o debate como perniciosos aos seus grandes objectivos: no governo, a defesa da nação do Minho a Timor; na oposição, a construção de uma sociedade socialista de tipo soviético ou chinês. Pouca gente, como Soares, foi capaz de conceber a divisão e a luta políticas como algo que não era necessariamente um mal. De Mário Soares, pode dizer-se que foi o maior político do seu tempo, como de outros se pode dizer que foram o maior escritor ou o maior pintor.