Em 30 anos como coreógrafo e encenador é a primeira vez que Rui Horta regressa ao palco como bailarino. O espetáculo chama-se “Vespa”, é um solo íntimo sobre o recôndito dos nossos pensamentos, com estreia marcada para quinta-feira, 20, no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, no mesmo dia em que o criador completa 60 anos.
O prolongado afastamento de cena e os motivos para uma estreia absoluta em dia de aniversário são explicados por Rui Horta nesta entrevista – que poderia conter muitas memórias, não se desse o caso de ele não querer perder tempo com o passado, que é apenas “lenha queimada”.
Nascido em Lisboa, começou a dançar aos 17 e sonhou ser arquiteto. Estudou dança em Nova Iorque nos anos 70 e ali foi coreógrafo e professor. Regressou a Portugal na década seguinte como bailarino e coreógrafo, depois passou mais 10 anos a viajar pela Europa, muitas vezes como diretor do SOAP Dance Theatre de Frankfurt, até que em 2000 se aproximou do Alentejo para fundar o Espaço do Tempo, uma residência de criação artística no Convento da Saudação, em Montemor-o-Novo, a uma hora da capital. A planície atou-lhe as mãos e os pés, e isso é bom, diz o bailarino, que fala por impulso, e depressa, como quem mantém a energia voraz da grande cidade.
“Vespa” é um regresso e talvez seja uma despedida. Não se sabe. A seguir a Guimarães, apresenta-se em Coimbra (29 e 30 de abril) e Aveiro (6 de maio), depois Ovar, Famalicão, Viseu, Guarda e Porto. Para quando Lisboa? “Decidi esperar um bocadinho”, responde.
Esteve 30 anos sem dançar. Porquê?
Porque sempre me deu muito gozo estar atrás do palco. A construção coreográfica é tão intensa e necessita de uma distância crítica tão grande – um estar de fora – que quando coreografava ou encenava sentia que se estivesse em palco o resultado não seria tão bom. Achava que era melhor estar fora, para ter distância. E depois a vida vai-se complicando, vamos tendo um percurso cada vez mais complexo, depois tenho três filhos, depois a vida começa a estar cheia, depois quando voltei a Portugal criei o Espaço do Tempo… Não sobra realmente o tempo para te disciplinares e cuidares do teu corpo, acabas por ter energia para estares atrás, não em cima do palco.
Isso significa que o trabalho de intérprete também é muito exigente?
Sim, mas acho que, sobretudo, houve outras coisas que me apaixonaram muito. A composição coreográfica é como a composição musical, por isso é que o autor se chama compositor, embora no caso da dança se fale em coreógrafo: é de uma complexidade extrema, é um trabalho gigantesco de organização mental e cerebral. Não se compadecia com o eu ser também intérprete. Hoje volto a dançar porque os meus três filhos são muito autónomos e estão grandes, estão a estudar fora de Montemor, uns em Lisboa outros lá fora, e o Espaço do Tempo está em velocidade de cruzeiro, o que me permite um certo distanciamento. Isso naturalmente levou-me a pensar que era agora ou nunca. Muito mais tarde também já não faria sentido. Quer dizer, tudo isto é improvável. Começar a dançar outra vez aos 60 anos… A última vez foi aí aos 28 anos, nem foi bem aos 30. Mas é bestial, nada disto tem dramatismo.
Estrear em dia de aniversário parece um pouco dramático.
Até pode parecer uma encenação do retorno, mas não há nenhuma encenação do retorno. De repente, havia espaço e tempo. Há sete anos já tinha feito uma tentativa, quando fiz o “Local Geographic” [no Centro Cultural de Belém]. Fraturei um menisco dois meses antes da estreia e pedi ao meu amigo e intérprete Anton Skrzypiciel para ser ele a fazer. De repente, no verão passado decidi voltar. Como tinha uma ópera na Alemanha até ao fim de janeiro, só teria tempo de apresentar um espetáculo na primavera. Pensei que calhava bem em abril, no dia de anos. Agora, claro, estou a convidar os meus amigos para a festa, que vai ser um jantar a seguir à estreia em Guimarães.
[excerto de “Local Geographic”, 2009]
Arrepende-se de tantos anos fora de palco?
Não, e se não fizesse este solo, agora, também não me arrependia, há mais coisas para fazer. Há um mês andei aflito com um joelho e pensei nem estrear. Claro, era chato, mas outra pessoa faria. Mas é muito mais engraçado fazer comigo.
Porquê um solo?
Não me interessa fazer uma coisa autobiográfica, não vou começar a falar da minha vida. Acho que o melhor caminho para a má arte é andar a contar a vidinha em palco. Não acho que seja por aí. Este espetáculo tem um registo pessoal, pessoalíssimo, de exposição, é evidente, não posso deixar de ser eu. Mas é uma obra de arte universal, espero que seja interessante. Tem a ver com todos nós, é sobre coisas que todos temos dentro da cabeça. Chama-se “Vespa” porque é como um inseto a picar por dentro, a roer, uma espécie de pica-miolos. Todos temos isto: fantasias, algumas até escabrosas, outras mais sexuais, temos momentos quase horríveis que não revelamos a ninguém, nem ao nosso melhor amigo, nem aos nossos pais. Por exemplo: “O meu filho estás a chorar há três horas seguidas, quase que me apetece mandá-lo pela janela.” É um pensamento que todos os pais tiveram, mas nunca ninguém o fez, não é? Temos todos imensas coisas dentro de nós, algumas lindíssimas, amores que não vamos seguir, empregos que não vamos ter, livros que não vamos escrever, filmes que não vamos ver, caramba, a força que isso tem na nossa felicidade. Quer dizer, é essa falta de serenidade que faz com que estejamos vivos, a vida é isso, até à última gota gastarmos o que pudermos. Acho que esta é uma peça que não tem só a ver comigo, mas com todos. As coisas cá de dentro, algumas indizíveis, que normalmente omitimos, são a espinha dorsal daquilo que é o pensamento, o nosso edifício.
É uma visão otimista: poderia ter feito uma interpretação pesada e deprimente disso tudo.
Claro. Por isso é que não é um espetáculo sobre o passado, é completamente um espetáculo sobre o futuro. Não me apetece falar do passado. É um espetáculo sobre tudo o que falta fazer. É sobre o desembaraçar-se de uma carapaça – há uma carapaça neste espetáculo, uma carapaça coreográfica e a vários níveis – para depois haver uma leveza que permite soltar as últimas coisas. E nunca se solta tudo, é impossível, impossível. Mas é um registo de intimidade, nunca poderia fazer isto numa peça de grupo. E, sim, tenho de aceitar que é de uma enorme exposição. Mas, ou é ou não é, é no fio da navalha, é sempre tudo no fio da navalha.
Quer adiantar pormenores do que vamos ver em cena?
O espetáculo tem uma hora, com um bocadinho de tudo o que me apeteceu. Acima de tudo, tem corpo, um corpo, uma grande generosidade física, e é no limite. Quando acabo, estou muito cansado e no dia seguinte dói-me sempre qualquer coisa, tem sido assim em todos os ensaios, o que é ótimo. Ou é ou não é. Tem muito corpo, mas tem texto e instalação e iluminação e arquitetura, porque sou assim, é um todo-o-terreno.
Disse que fazer espetáculos sobre a vidinha é o caminho para a má arte…
O [escritor] Mário de Carvalho diz o mesmo.
Mas descreve “Vespa” como uma obra de enorme exposição. Qual a fronteira entre autobiografia e exposição da intimidade?
É totalmente diferente. Essa é a questão do discurso artístico. Não existe discurso artístico sem um alto nível de grito interior e de lado pessoal em tudo o que se faz. Nós não estamos a falar de nós, estamos a falar do mundo, a falar de tudo. A poética é isso, um exercício extremamente pessoal… É uma espécie de mundo reciclado através da alma de cada criador. Sei que sou um pouco radical ao dizer isto, mas para mim não existe criação sem grito. Criação pior que a história da arte deu à humanidade foi o Maneirismo, que é uma concha sem nada lá dentro, é forma sem conteúdo. Tem de haver conteúdo, mas não precisa de ser auto-referencial. Há obras auto-referenciais muito boas, mas, em geral, aquilo que é importante na criação é um grito, tudo filtrado através do criador, da pessoa que escreve um livro ou faz uma peça de música. Mozart não escreveu a pensar nele. A música é dele, mas escreveu tudo e mais alguma coisa, sobre a morte, sobre a vida, os concertos de piano, as viagens, e não está a falar da vidinha dele. A arte tem a ver com alteridade, eu e o outro, o outro significante, os outros à minha volta, tudo o que me cerca. Passar a vida a falar de si próprio normalmente é de quem não tem muito a dizer.
[excertos de coreografias de Rui Horta nos anos 90]
Como sente o corpo nesta altura?
A doer por todo o lado. Aliás, vou dançar com uma lesão, mas vou dar tudo, não há outra hipótese.
O corpo está como imaginou que estaria aos 60 anos?
Há uns anos, conheci um tipo – aliás, sou capaz de mais tarde escrever uma peça sobre isto – que chamava Chuck Kelley. Conheci-o como professor, mas ele era um grande bailarino e ensinou a outra pessoa todos os passos do maior sucesso da Broadway. O espetáculo não foi coreografado por ele, mas pelo Michael Bennett, e nem sequer recebeu royalties. Ele ensinou os passos todos ao outro e não recebeu nada. Conheci-o com 60 anos, quando eu era um jovem de 20 e poucos, a dar aulas num estúdio ao lado do meu, quando eu era já um professor com alguma repercussão, isto em Nova Iorque. Nunca falo do meu percurso como professor, mas acho que foi um belíssimo percurso. Jurei a mim próprio que nunca iria ser como o Chuck Kelley, que aos 60 anos tinha que se mandar ao chão para ganhar a vida. Aqui estou, com 60 anos, mando-me ao chão para ganhar a vida, mas tenho opções que o Chuck Kelley não teve. Isto para dizer o quê? Se pensei aos 60 anos estar a dançar, não, não pensei, sobretudo nunca quis estar a dançar para ganhar a vida. Faço-o aos 60, mas é por escolha. Quero fazer isto, não tenho de fazer isto, quero fazer, porque acho muito importante este sentimento… Não queria levar para este lado, mas acho que sempre houve um aspeto sacrifical em tudo o que é criação artística, nomeadamente o corpo na dança. Nós abusamos sempre o corpo, desde o momento em que começamos a dançar. Como um jogador de futebol ou um tenista. Não há hipótese, todos temos artroses, o corpo virado ao meio. Não há outra maneira, decidimos fazer isto, é assim. Claro que dançar aos 60 é um extremo, mas uma coisa é ter de o fazer, outra coisa é querer fazê-lo. Quero fazer porque acho bonito, fantástico.
Faz 60 anos na quinta-feira, começou na dança aos 17…
Nem quero falar muito nisso.
Porquê?
Porque nunca olho para trás, nunca olhei para trás, nem estou agora a olhar para trás. Só olho para a frente. É muito mais engraçado o que está para a frente, porque a vida é uma coisa que se faz, não é uma coisa que se conta. Isto é como ter um carro sem retrovisores e andar sempre para a frente. Nunca senti necessidade de reportório, nunca senti a necessidade enciclopédica de pertencer a qualquer linha, não sinto nenhuma necessidade de comentar a minha vida, não tenho Facebook, nada dessas coisas. É para a frente. Há tanta coisa para fazer, olhar para trás é perder um tempo dos diabos. Para trás é tição queimado, ardeu, é lenha queimada. O que é bom é o fogo, o que vai arder, o que está para a frente.
É por isso que na internet a sua biografia pouco aparece?
Agora tenho uma manager, que é uma produtora fantástica, a Mariana Brandão, que tenta disciplinar-me um bocado. Ela tentou fazer, mas não conseguiu, uma recolha para pôr na Wikipedia. Porque a entrada com o meu nome na Wikipedia foi alguém que escreveu, não sei quem foi. Agora já não se pode editar a entrada, temos de pedir autorização, saber quem escreveu, é uma loucura. Alguém pôs lá aquilo, nunca me preocupei com a Wikipedia. Muito dos vídeos no YouTube são postos sem autorização, são pessoas que filmam com o telemóvel. Por acaso, agora, andamos a tentar limpar aquilo e a tirar uma série de vídeos. Não sinto mesmo necessidade dessas coisas.
Sendo assim, esta entrevista não vai ter o balanço da sua carreira.
Não, não vou fazer, isso será feito por outras pessoas. É sempre feito por outras pessoas. Mas é bom, tenho imenso gozo no que tenho feito, mas não sinto mesmo necessidade de falar nisso.
Que relação tem com o seu trabalho? Às vezes fala das obras de maneira quase obsessiva.
Sou um tipo obsessivo, como a maioria dos criadores, acho eu. Não sou doentiamente obsessivo e compulsivo, mas tenho um lado obcecado. Para fazer coisas bem feitas tem que se ser equilibradamente obcecado. Mas também gosto muito do meu hedonismo e preciso do meu tempo. Fui para o Alentejo porque sei que sou um tipo muito urbano e sem o Alentejo eu não teria sobrevivido. Foi uma espécie de atar das mãos e dos pés. Foi muito importante. No Alentejo, pego na bicicleta e vou fazer um passeio de duas horas logo de manhã. Isso mantém-me em forma, descarrego a energia. Não quer dizer que depois não trabalhe oito ou dez horas. Mas não gosto de me ver como um tipo workaholic. Questionei-me muitas vezes sobre se sou ou não sou. Não acho que seja. Trabalho imenso, mas muito mais importante do que o trabalho é o amor, amar e ser amado, não há melhor, por amor de deus. Não tenho a mínima dependência do trabalho, é só porque gosto muito do que faço.
Continua a passar muito tempo em Montemor ou está cada vez mais em Lisboa?
Vivo entre Lisboa e Montemor, porque tenho filhos a estudar em Lisboa e a minha companheira é de Lisboa e vejo aí muitos espetáculos. Sempre fiz o caminho Lisboa-Montemor duas ou três vezes por semana, para mim é normal. Desde há um ano até tenho estado mais em Montemor. Mas é uma opção. Se eu estampasse uma t-shirt seria a dizer “Nova Iorque-Munique-Montemor-o-Novo”. É a minha vida. Não estou em Lisboa porque não quero estar. Adoro Lisboa, vou quando quero, mas já vivi o que tinha a viver em cidades.
A cidade não é um bom sítio para a criação artística?
A cidade é brutal, é extraordinária. A metrópole é a grande invenção da civilização, é a história das cidades que faz o que nós somos. Mas esse caldeirão, para mim, tem uma armadilha, porque não te dá distância crítica, e para a criação isso faz falta. A arte não é uma repetição da realidade, é uma reflexão sobre a realidade, é um segundo olhar, e para esse segundo olhar tens de ter uma distância sobre ti próprio, sobre a tua arte, sobre o mundo. Portanto, viver dentro de uma cidade tem uma ratoeira. Acho que vivi em grandes cidades na idade certa, quase dez anos em Nova Iorque, dez anos entre Munique e Frankfurt, foi fantástico, estive praticamente dois anos entre Paris e Montpellier, Barcelona e Madrid… Mas agora Montemor-o-Novo faz todo o sentido e por isso é que o Espaço do Tempo existe, é uma zona de retiro, de residência artística, que responde perfeitamente às necessidades artísticas, por isso é que está cheio de artistas. Este ano temos 67 residências, é brutal. Os grandes “inputs” estão todos no caldeirão, estão na cidade, só que a criação não tem obrigatoriamente de estar na cidade, tem de estar num sítio seguro, num porto de abrigo, com distância crítica.
Voltemos a “Vespa”. Vai ser a última dança?
Nos últimos tempos isto tem-me dado tanto gozo, que não sei se vai ser a última, apetece-me fazer mais. Pode ser que seja a última, esta já cá canta, depois vamos ver até onde consigo fazer. Mas não posso dizer que seja a última, porque, verdadeiramente, estou a ter muito gozo.