É impossível determinar simultaneamente a posição e a velocidade de um canalizador. Sabemos que se está a deslocar para qualquer lado (por exemplo para nossa casa), mas nunca sabemos exactamente onde está; e se por acaso está em nossa casa tememos que se possa já estar a deslocar, mentalmente que seja, para outro lado.
Quando aprendem o seu ofício, e antes de ser autorizados a mudar torneiras, os canalizadores têm de mostrar que desenvolveram as técnicas necessárias para que nenhum dos seus clientes possa determinar onde estão; ou, caso algum o consiga, que pelo menos não se possa determinar para onde vão. A ciência da canalização consiste no conjunto daquelas técnicas, desenvolvidas pelos praticantes e incompreendidas pelos clientes.
À mais antiga dessas técnicas chamam os historiadores “a Senhora de Benfica.” A origem da expressão remonta ao tempo em que só existiam à superfície da terra duas zonas urbanizadas: Benfica e a Suméria. Um canalizador que tivesse sido chamado à Suméria sabia já nessa altura interromper a sua tarefa invocando uma urgência em Benfica. Poderia assim no decurso das suas tarefas facilmente justificar as eternidades que nelas dispendia, e a sua atenção menos regular aos assuntos. No idiolecto das profissões úteis a expressão ‘Senhora de Benfica’ designa ainda hoje uma outra pessoa longínqua, com urgências em tudo semelhantes às nossas.
A possibilidade convida à reflexão. É verdade que a Senhora de Benfica foi muitas vezes um expediente, de que os nossos antepassados sumérios com razão desconfiaram. Mas foi sobretudo o primeiro tratamento para o dom da ubiquidade que nos falta, e por isso a forma mais antiga de filosofia. A menção à Senhora de Benfica intima a existência de partes do globo que nunca conheceremos directamente, povoadas por animais que interferem com a nossa maneira de fazer as coisas. As nossas vidas são constantemente interrompidas pela suspeita de que pessoas que não conhecemos podem estar vivas em lugares remotos, e ter necessidades que não coincidem com as nossas. Era a esta gente que os primeiros filósofos chamavam a Senhora de Benfica.
Ainda hoje, em horas de ócio que convidam à confidência, sentados no chão das nossas cozinhas entre um mar de ferramentas e destroços, os canalizadores nos contam histórias da Senhora de Benfica. Comparam-na connosco, e com os nossos pequenos problemas de torneiras; descrevem-na com certo pormenor. As histórias dos canalizadores permitem-nos adquirir uma ideia mais filosófica das coisas, sem fantasias nem exageros. Uma ideia mais filosófica das coisas é a ideia de um mundo em que a nossa vontade não produz resultados imediatos; a ideia de uma vida que depende de uma série de interacções com animais que nunca conheceremos. Quando acabam as suas histórias os canalizadores levantam-se, e desaparecem em direcção a Benfica.