Descontadas questões pontuais, não é a estatização ideológica e institucional do ensino que demarca substantivamente o atual governo dos anteriores. Inovadoras são as condições políticas geradas em finais de 2015 por congregarem numa solução governativa todas as esquerdas: PS, PCP e Bloco de Esquerda. É isso que pode estar a transformar a “geringonça” num paradoxal mal libertador, posto que tem incentivado como nunca o esboroar dos ferrolhos que prendem as direitas políticas a uma estupidez seguidista em relação a vanguardas esquerdistas.

Daí que seja a inovadora arrumação das forças políticas a principal instigadora das recorrentes e cada vez mais intensas polémicas sobre o ensino, núcleo finalmente remetido para o âmago do debate político num país que já não pode brincar às obras públicas. Essa é uma das marcas salientes dos primeiros seis meses do governo de António Costa.

Porém, nada de substantivo mudará se as direitas políticas não fizerem muitíssimo mais para demarcar um campo existencial e político próprios no ensino, e com dimensão relevante, cujas mensagens-chave passem a ser claras para o senso comum. Isso porque as hegemónicas ideologias esquerdizantes estão longe de terem sofrido rombos sensíveis, ideologias iluminadas pelas abstrusas ciências da educação que tudo foram contaminando, incluindo o interior de partidos como o PSD e o CDS-PP que, em matérias de ensino, mantêm componentes tão fossilizados quanto o PCP ou a Fenprof.

Antes de avançar, clarifico que o ensino público pode ser tão relevante ou tão desqualificado quanto o ensino privado, sendo que em qualquer caso a qualidade do sistema tem sido duplamente martirizada. É vítima de ativismos irresponsáveis das esquerdas, mas não menos vítima de atitudes abúlicas, envergonhadas ou mesmo cobardes das direitas.

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Aliás, a habilidade-mãe das esquerdas só funciona graças à esquizofrenia das direitas. Aquelas fabricaram o dogma de tutelarem, em exclusividade, a escola pública. E foi sobretudo o PCP, por via do seu braço sindical, a Fenprof, quem melhor alcançou um prodígio: convencer este mundo e o outro que a atual escola pública, muito em particular as suas muitas virtudes, são produto das esquerdas, do seu empenho, do seu trabalho, das suas preocupações sociais.

É bizarro que quem mais tem feito pela glorificação de tal aberração esquerdista têm sido as direitas políticas. Estas, quando conseguem impor no espaço público laivos de um discurso autónomo, apostam fortemente no que possa estar associado à defesa do ensino não-estatal ou privado ou, quando muito, esporadicamente abandonam essa redoma. Mas fazem-no de modo tímido ou insustentável no tempo. A defesa nunca plenamente convincente dos exames nacionais constitui um exemplo particularmente sensível.

Na prática, para o senso comum o que vai sobrando dos discursos e propostas das direitas são ataques manifestos ou latentes, vigorosos ou tímidos contra o ensino público, muito em particular contra o seu corpo docente. Foi em muito por isso que o último se sente estigmatizado enquanto bando de esquerdistas-grevistas ou ‘comunas’, até porque nunca as direitas políticas protegeram vigorosa e decentemente o ensino público e o seu corpo docente das correntes esquerdistas que os têm sistematicamente prejudicado.

Do balanço de décadas, resultou um fortíssimo acantonamento das direitas e do seu discurso sobre o ensino num campo residual, o da iniciativa privada ou não-estatal. Ainda que as últimas sejam social e simbolicamente relevantes, o decisivo joga-se num outro tabuleiro, o do ensino público. Mas foi e tem sido a incompetência estratégica e voluntária das direitas que tornou as esquerdas imbatíveis no controlo hegemónico do sistema de ensino.

Portanto, as direitas prestam-se sempre ao papel de confundir o acessório com o essencial, deixando um adversário danoso em roda livre num sistema institucional decisivo para o futuro coletivo. Descontado o acesso ao ensino, se temos um sistema que nada tem de democrático no modo como é regulado pelos poderes tutelares (governos, políticos, ministério da Educação, universidades) tal deve-se ao abandono cívico, político e ideológico do ensino público pelas direitas.

A defesa da escola pública, chavão que enche a boca das esquerdas, implica que se no quotidiano das salas de aula, espaços onde o que é mesmo importante se decide, subsiste alguma qualidade (e subsiste!) é também porque os professores do ensino público que não são de esquerda (apolíticos ou das direitas) há décadas que dão o seu melhor. Se mais não fazem é por resistirem institucional e politicamente desamparados. Mas não só. Os louros dos seus esforços acabam por cima usurpados politicamente pelas esquerdas.

Acrescento que, por seu lado, as direitas até agora nem sequer manifestaram sinais de defenderem princípios elementares de um estado de direito civilizado, cujo funcionamento deve ser apolitizado e apartidarizado ou, numa perspetiva diferente, plural. No ensino público português nunca existiram propriamente nem uma nem outra coisas.

Infiro até que os docentes do ensino público que não são das esquerdas podem eventualmente revelar especial propensão para se centraram bem mais nos conteúdos científicos das disciplinas, atitude essencial à salvaguarda da qualidade do sistema, e fazerem maiores esforços para proteger os seus alunos, aulas e dignidade profissional contra os muitos ‘ativismos’, ‘flexibilidades’, ‘currículos alternativos’ ou ‘engenharias sociais’ que invadiram as escolas a partir de propostas revolucionárias ou ‘progressistas’.

Tenho dúvidas quanto pesará o segmento não ‘esquerdista’ no universo global dos professores da escola pública. Mas do que não tenho dúvidas da sua relevância para o bom ensino e que se conta entre os obstáculos a uma maior degradação da qualidade. O que na verdade acontece é que as esquerdas partidárias e sindicais são as exímias representantes daqueles que mais estragaram e estragam a escola pública a partir de dentro.

Era, por isso, da maior relevância que se desfizesse a intuição absurda segundo a qual os professores que não são de esquerda vivem encarcerados em redomas de ensino privado ou cooperativo. Esse mais não é do que um subproduto do medo de mários nogueiras e PCP’s desta vida por demais entranhado na ação governativa, parlamentar ou partidária de partidos como o PSD e o CDS-PP.

Foram as falhas graves das direitas, mesmo quando lideraram governos, que tornaram a indisciplina num dos núcleos mais perversos das relações de sala de aula, posto que em democracia jamais existiu um projeto, força cívica ou política que se batesse, com verdade e seriedade, por valores institucionais como a autoridade, a ordem, o respeito por hierarquias, a atribuição efetiva de poder à palavra dos professores. Nisto as esquerdas e a Fenprof foram, são e serão os maiores inimigos da qualidade do trabalho em sala de aula. O facto é que nunca nenhuma força política ou cívica combateu os vícios ideológicos nocivos das esquerdas.

Tem sido a demissão cívica, política e ideológica das direitas que permitiu que o sistema de ensino se enredasse numa burocracia intragável. Entre outros domínios, ela é espelhada num sistema de classificação dos resultados escolares que mistura escalas de classificação quantitativas entre si (níveis de 1 a 5; valores de 0 a 20; percentagens de 0 a 100); destas com referentes qualitativos (‘excelente’, ‘bom’, ‘satisfaz’, ‘fraco’, ‘muito fraco’, etc.); para além de avaliações descritivas para cada aluno – salganhada burocrática em que as diferentes classificações e avaliações se podem contradizer ou anular mutuamente, desacreditando um sistema de avaliação que acaba constrangido a promover o sucesso administrativo. Tal amálgama comprova ainda como o pensamento ‘progressista’ é exímio em fabricar apagões na transparência que deve existir nas relações entre uma instituição com fins sociais relevantes, como a escola, e a comunidade por ela servida e que paga pesadamente os serviços daquela.

Enfim, será desta que as direitas passarão a ter remorsos por causa da sua quase nulidade existencial no ensino?