Todos os dias, ao entrar em Lisboa para vir trabalhar, tenho de passar por um cartaz do Bloco de Esquerda que exige o fim da “precariedade”. Todos os dias, ou quase, tenho de ouvir Catarina Martins repetir, como se fosse uma verdade inquestionável, que combater a precariedade é fazer pela “condição de vida das pessoas” e pela “qualidade da nossa democracia”. Todos os dias – todas as horas? – ouço lamentar esse mal imenso que é a “precariedade”, o “trabalho precário”, a necessidade de fazer justiça e integrar, no Estado e nas empresas, todos esses trabalhadores. O tema é mesmo discutido na Assembleia da República sem que alguém tenha a coragem de contrariar este discurso que se tornou dominante.
É então que tenho mesmo a certeza: a linguagem que utilizamos todos os dias está corrompida, foi contaminada pela ideologia de bloquistas e comunistas e nem demos por isso. Porque o nosso problema não é acabar com o trabalho precário – é tornar menos definitivos todos os restantes contratos de trabalho. O problema está a ser colocado de pernas para o ar.
Compreendo a retórica do PCP, pois ainda olha para o país e para o mundo como se estivéssemos no tempo da primeira revolução industrial e não entende que, nas economias modernas, há cada vez mais empresas a serem criadas e outras a desaparecerem, actividades que deixam de fazer sentido e outras que surgem do nada, e que os mecanismos da inovação, que nos deram níveis de bem-estar inimagináveis ainda há uma ou duas gerações, passam por aquilo a que Joseph Schumpeter chamou “destruição criativa”.
Também entendo a campanha do Bloco, pois dirige-se grupos eleitorais muito específicos, a clientelas bem definidas (como os dos bolseiros financiados pelo Ministério da Ciência, só para dar um dos exemplos mais gritantes) que Catarina Martins deseja que fiquem eternamente agradecidas ao activismo do seu grupo parlamentar.
Também não me surpreende que um PS cada vez mais colonizado pela ideias radicais não seja capaz de fazer mais do que balbuciar algumas coisas sobre a necessidade de ver se, à mesa do Orçamento neste tempo de saída dos “défices excessivos”, há pão para tantas bocas.
O que estranho é que, caminhando mais para a direita, aí se coloque sobretudo a tónica na crítica ao Governo por… ter criado mais precariedade.
Assim não vamos lá. De resto já nem é assim que boa parte dos portugueses pensa: nos inquéritos que se fazem nas faculdades de Economia sobre o emprego que se deseja ter no final dos cursos há não muitos anos o sonho era entrar na função pública, hoje mais depressa é criar uma empresa. Os mais novos já perceberam que o mundo mudou e vai continuar a mudar – os nossos políticos é que continuam presos ao passado e à única realidade que conhecem: o Estado.
Vale por isso a pena dar um salto a esse passado em que tudo começou, recordando que foi no Verão Quente de 1975 que, em nome da “correcção das distorções” que seriam “próprias da economia capitalista”, saiu legislação a proibir os despedimentos individuais. Estávamos no auge do “gonçalvismo”, mas o princípio ficou, ganhando depois dignidade de norma constitucional. Nunca ninguém conseguiu, nos mais de 40 anos que desde então decorreram, alterar de forma substancial esse princípio, pelo que não tardou que surgissem os “contratos a prazo”: a primeira lei data logo de Outubro de 1976. Estavam assim criadas as condições para um dos maiores cancros da economia portuguesa: a existência de um mercado de trabalho dual, em que uns têm direitos a mais e outros direitos a menos. Numa sua anterior encarnação, como académico especializado em mercado de trabalho, Mário Centeno foi um dos mais acutilantes críticos desta situação. Hoje, como ministro das Finanças, parece esquecido de tudo o que então defendeu, o que é pena.
Contudo ainda há poucas semanas ele próprio teve uma oportunidade de comprovar que o nosso mercado de trabalho continua altamente distorcido – foi quando Angel Gurría, secretário-geral da OCDE, esteve em Lisboa para apresentar o último relatório da organização sobre o estado da nossa economia. Um dos pontos desse relatório era precisamente sobre o “mercado de trabalho continuar altamente segmentado”, isto é, dividido entre os que têm contratos permanentes e os que têm contratos a prazo. Mais: Portugal é, por isso mesmo, um dos países onde uma maior proporção dos trabalhadores está contratada a prazo – é “precário”, na linguagem do Bloco –, algo que fica bem evidente no gráfico (pág. 48), que mostra que só em Espanha, na Polónia e na Eslovénia a proporção de jovens trabalhadores contratados a prazo é maior.
A OCDE, tal como toda a literatura especializada (incluindo os velhos textos de Mário Centeno) atribuem a proliferação dos contratos a prazo à rigidez dos contratos sem termo. A organização considera mesmo que, apesar de terem sido realizadas em Portugal “reformas substanciais” do mercado de trabalho depois de 2011, reformas essas que “tiveram um impacto positivo e devem ser mantidas”, a verdade é que “aspectos fundamentais da rigidez do Mercado laboral em Portugal continuaram a não ser tocados, especialmente devido às limitações constitucionais”.
O resultado é, como se vê num outro quadro retirado do mesmo relatório (pág. 49), que mesmo depois das reformas hiper-neoliberais do anterior Governo, o nosso país continua a ser aquele em que é mais difícil realizar um despedimento individual.
Não é preciso ser um economista da OCDE ou um estudioso do mercado de trabalho para saber que, num tempo em que, mais do que nunca, o dinamismo da economia está ligado à forma como as empresas se conseguem adaptar aos novos desafios dos mercados, a rigidez existente em Portugal tem pesadas consequências negativas.
A primeira foi detectada ainda a lei da protecção contra o despedimento individual não tinha um ano: obrigadas a contratar trabalhadores “para a vida”, as empresas preferem não arriscar. Foi para contrariar essa situação que estava a fazer subir o desemprego que surgiu a primeira lei dos contratos a prazo, aprovada num governo do PS, permitindo que essa prática se fosse disseminando. Assim também se desincentivou quer a aposta na formação dos trabalhadores – quem dá formação a contratados a prazo? – como se fez com que os trabalhadores tivessem mais receio de arriscar novas experiências, evitando trocar de empregador. Por fim, prejudicaram-se sobretudo ao mais novos, aqueles que por regra têm uma formação mais elevadamas que são os que estão “fora” do sistema, “fora” dos contratos sem termo e do seu ambiente demasiado protegido, um regime que, ao mesmo tempo, nem sequer permite penalizar os que, nas empresas ou no Estado, se “encostam” à sombra do seu posto de trabalho garantido.
Nada disto é novo, tudo isto vem nos livros e em dezenas de estudos académicos, tudo isto vem sendo dito de forma repetida ao longo dos anos. Mas enquanto noutros países, como Itália, são os próprios socialistas a promover as reformas necessárias (para não recordar as reformas na Alemanha, promovidas por um governo social-democrata há mais de 10 anos), em Portugal os nossos socialistas estão mais preocupados em agradar à extrema-esquerda e em reverter o pouco que se avançou nos últimos anos.
E como já não fosse suficientemente mau estarmos a ter a discussão errada, condicionada por agendas extremistas e slogans populistas, o andar dos dias parece apontar para a cedência do Governo, no que ao Estado diz respeito, às reivindicações da extrema-esquerda e dos sindicatos. Fizeram-se contas? Percebeu-se se todos os que agora batem à porta do Estado são mesmo necessários? Tem-se a mais pequena noção do significará abrir milhares de vagas nas escolas e nas universidades apenas porque, ao longo dos anos, se alimentou um ciclo vicioso de contratações temporárias e se criou uma “bolha” de bolseiros?
Voltem a olhar para o segundo gráfico. Notem que o segundo país com menos protecção contra o despedimento individual é o Canadá e o terceiro a Grã-Bretanha. Em ambos o desemprego é mais baixo, o dinamismo da economia maior, para ambos estão a fugir muitos dos nossos jovens, nada receosos dos empregos “precários” que aí lhes oferecem – porque na verdade aí todos os empregos são “precários” –, antes cheios de vontade de fazer pela vida.
Volto aonde comecei: com uma discussão assim capturada por ideias bafientas, mais próprias do século XIX do que do século XX, não iremos a lado nenhum. Da mesma forma que não iremos a lado nenhum se os partidos e as forças reformistas, que querem libertar a economia dos seus estrangulamentos, se fecharem num silêncio atemorizado, incapazes de travar a batalha da opinião pública.
Mas é assim que estamos, para nossa desgraça.
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