Qualquer excursão, mesmo breve, pelo interior de Portugal, não poderá deixar de mostrar as vantagens do seu estado actual de desertificação. Não há quase ninguém; os grandes equipamentos modernos, nomeadamente hipermercados e hospitais, são de utilização fácil e pouco demorada; exceptuando uma universidade ou outra onde se estuda Gestão de Gestão de Estruturas, ou Engenharia de Circulação da Circulação, e cuja população mais buliçosa é não obstante decídua, as pessoas têm uma idade madura. Com essa idade vem uma perspectiva mais assente sobre os grandes assuntos do mundo, e um temperamento previsível.

Quando a população temporária desaparece, o interior revela todas as suas vantagens: a poesia e quase o aspecto de uma estação balnear em Janeiro. A perder de vista estendem-se os campos e os matagais, com as suas casas abandonadas, os palheiros sem telhado, e os cães à solta; e só esporadicamente aparece uma casa recente, cuja construção foi interrompida a tempo. Das povoações mais remotas, graças às excelentes estradas, todos os habitantes se deslocam até à sede de concelho, onde trabalham na Hemeroteca Municipal ou na Piscina Olímpica. Da parte da tarde os funcionários da hemeroteca vão nadar; de manhã os funcionários da piscina vão consultar a imprensa de todo o mundo; e no dia seguinte tudo recomeça.

Só quem não vive no interior se pode indignar com a sua desertificação; e considerar que tanto espaço vazio é um desperdício. No litoral todas as amenidades são de utilização difícil e demorada; as estradas são menos boas; e os locais têm que se entender com os médicos em português. É pois compreensível que lá se inveje os sítios onde não há ninguém, e que se sonhe, não sem acinte, com um mundo em que as pessoas do interior possam sofrer o horror genuíno da vida. A engenharia social é filha do ressentimento. No fundo o que preocupa as pessoas do litoral é que haja quem não viva tão mal como elas.

O interior deserto tem vantagens morais importantes. A maior é justamente a de lembrar à grande maioria das pessoas que não vive lá que ainda há quem viva longe deles. Essa vida não será diferente porque esteja mais perto da natureza, ou porque os habitantes do interior sejam menos primitivos. É diferente porque no interior se fazem as coisas de modo diferente; ninguém por exemplo se dá ao trabalho de disfarçar o facto de não ter muito para fazer. Entretanto, enquanto os habitantes do litoral se entretêm a imaginar como devia ser o interior, o interior vai-se movimentando com placidez em direcção ao litoral. Cada metro que conquista reduz melhor a área disponível para a miséria humana, e torna mais real a possibilidade de a orla costeira, cheia de gente, vir um dia a partir-se como uma bolacha de água e sal.

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