Já se sabia que não é frequente morrer de ridículo. Agora sabe-se, também, que o absurdo não é fonte habitual de fatalidade.

Esta afirmação de ciência tem a seguinte base: o ministro da Cultura disse em entrevista ao Expresso, no passado sábado, que cobrar 3.000 euros pela utilização do Panteão Nacional, “Por amor de Deus, é um absurdo”. E qual foi a proposta que o ministro apresentou, em relação ao já célebre despacho 8356/2014 de 27 de Junho, que regulamenta a utilização de espaços da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), incluindo o Panteão Nacional, por privados? Pois bem — ”Subir a tabela de alugueres”.

E assim se inflaciona e gere as tendências de protesto nas redes sociais (foi aí que começou a onda de indignação relativa ao jantar da Web Summit no Panteão Nacional) e as suas consequências.

Afinal, o grande problema do indigno jantar (segundo o comunicado do primeiro-ministro da passada semana, depois da referida onda), autorizado pela DGPC em 2017 — e cujo texto seria bom os portugueses conhecerem — foi: o preço… baixo.

Se o assunto não fosse parte do modo como hoje se governa o país e se fala aos governados, seria para rir.

Em 2014, na sequência da minha determinação, enquanto secretário de Estado da Cultura, de criar uma regulação geral de utilização de espaços culturais públicos que desse transparência ao que há décadas já se fazia, mas de forma avulsa, a DGPC propôs uma regra e uma tabela de preços para a utilização de espaços em monumentos, palácios, museus, na sua dependência. O regulamento e a tabela foram aprovados pelo Governo a que pertenci. Sabe-se agora que, segundo o atual Governo, a tabela de preços, aprovada em 2014, é… absurdamente baixa.

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Fica bem a um Governo das Esquerdas aumentar preços de utilização de bens públicos por privados. Ou não?

Diria que não. Sugiro linhas, de natureza política e de natureza económica, a considerar: uma, diz que se deve fazer um equilíbrio entre acesso e custo de acesso dos cidadãos a bens públicos, estabelecendo para isso regras gerais e transparência – foi isso que fez o regulamento de 2014; outra, diz que existe um preço a partir do qual a aquisição de bens ou serviços baixa, ou que segmenta excessivamente o mercado.

Politicamente, o que pretende o Governo com este anunciado aumento de preços de utilização de espaços culturais e as restrições que pretende impor no Panteão Nacional, e que se estendem aos Jerónimos e Batalha?

Pelos vistos, usando a expressão do ministro da Cultura, corrigir os “absurdos” preços baixos (e, presume-se, evitar os jantares indignos que a DGPC autorizou, em 2017).

Ora essa declaração implica que: o Governo considera a rentabilização dos espaços culturais importante e que o ministro é bom avaliador de preços de utilização, ou que a DGPC lhe disse que os preços propostos em 2014 para os privados acederem aos seus espaços passaram a ser “absurdos” em 2017.

Salvo declaração em contrário, esta ideia de rentabilização não está longe da ideia de mercantilização de que, à saciedade, se acusou a tabela de preços de utilização dos referidos espaços.

Fica-se a saber, também, que nas coisas respeitantes ao preço dos bens, a sua relação com o mercado não decorre da teoria económica, mas da origem política do declarante: se quem coloca preços gerais em dados bens públicos é de “Direita”, é economicista; se quem aumenta os referidos preços é de “Esquerda”, é patriótico.

Economicamente falando, o aumento de preços de utilização de espaços significa, eventualmente, um aumento de receitas para a DGPC. Mas também significa que menos pessoas e organizações poderão aceder (pela exclusão do preço mais alto) – só pessoas ou organizações muito abastadas poderão efetuar utilizações destes espaços, excepto se se fizer uma longa lista de excepções.

Esta exclusão pelo preço não me parece ser, exatamente, o que melhor fica a um Governo que se diz “socialista”.

Na minha opinião, os espaços culturais do Estado devem sempre ser geridos numa visão equilibrada entre proteção do património e fruição pelos cidadãos – atualmente, o que mudou tanto para se considerar os preços praticados absurdamente baixos? Ou será que só os operadores turísticos é que terão direito a aceder, por via de preços mais altos?

Desde que deixei o Governo, evitei pronunciar-me sobre política cultural – considerei saudável estabelecer alguma distância em relação à matéria. Só o fiz agora por ter sido diretamente visado, de uma forma que considerei injustificada, pelo atual Governo – ao imputar a um despacho por mim assinado em 2014 decisões tomadas em 2017.

Este comentário inclui-se no quadro dessa pronúncia, por considerar a mesma necessária para evidenciar uma insustentável forma de argumentar e agir, do atual Governo, em termos políticos e comunicacionais, de que este caso é exemplo:

  1. Primeiro, houve indignação governamental contra um bode expiatório, para esconder a responsabilidade por uma decisão tomada;
  2. A seguir, quando tal estratégia não funcionou, sem se esclarecer como e porquê a decisão do jantar da Web Summit no Panteão Nacional foi tomada pelo Ministério da Cultura, anuncia-se uma alteração regulamentar que visa restringir a utilização do Panteão Nacional, do Mosteiro dos Jerónimos e do Mosteiro da Batalha por privados e ao mesmo tempo, aumentar preços de utilização em geral.

Concluo com uma afirmação de ordem mais geral: percebe-se que, sem nenhum efeito fatal à vista, o “absurdo” é uma das sementes convocadas e lavradas no atual modo de governar.

Sementes que também se moem e espalham — em moinhos de vento: inventa-se um “inimigo”, que depois se combate.

A seguir, sugere-se que todas as reações críticas fazem parte da luta partidária, e que a oposição só faz demagogia. As dinâmicas comunicacionais, vão atrás.

Será que a inteligência dos portugueses (e a prática política em democracia) merece tal trato?

É mais do que tempo de perceber, também em Portugal, que este tipo de estratégias (que não são exclusivas do atual Governo, mas de uma forma de fazer política) conduzem à valorização dos radicalismos e à simplificação de realidades complexas por movimentos extremistas, diminuindo a legitimidade dos eleitos e a pluralidade de expressões, a favor de tendências totalitárias e manipulações que têm efeitos à vista nos EUA, no Reino Unido, na Polónia, na Hungria, na Catalunha… enfim, naquilo a que se convencionou chamar as democracias ocidentais, por sinal, os lugares mais livres do mundo contemporâneo.

Não queiramos conduzir Portugal por este caminho, contribuindo para um efeito de fragilização das democracias, que tem de preocupar todos os responsáveis políticos.

Jorge Barreto Xavier foi secretário de Estado da Cultura entre 2012 e 2015