Quando precisamos de gritar para ser ouvidos, pode ser por necessidade emergente ou perda da razão. Por exemplo, o grito de socorro em alto mar não se confunde com uma gritaria entre adolescentes no recreio da escola.

Gritar pode ser um ato libertador. Já experimentaram abrir a janela e fazer a voz sair em total liberdade pondo cá fora tudo o que está a mais dentro?

Gritar corresponde, no lugar da família, a maior parte das vezes, a uma violência que deixa marcas profundas. No trabalho, pode ser sinal de humilhação, descontrolo, exaustão. Entre amigos, gritar estará entre a brincadeira provocatória e a demarcação do território. Na rua, grita-se para chamar o táxi, o empregado da esplanada, ou, loucamente, deambulando depois de perdida a casa. Nos jogos desportivos, grita-se a favor da equipa e para vituperar o adversário. Nas discotecas e bares é a única maneira de nos ouvirmos vagamente. Os pregoeiros gritam em mercados, feiras e romarias.

Bem se vê que gritar pode ter mil e uma significações.

A razão deste escrito é uma pergunta e uma reflexão sobre a pergunta: porque grita um político? E muito concretamente, porquê e quando grita António Costa?

Ocorreu-me a pergunta depois da gritaria em torno da refinaria de Matosinhos da Galp por parte do secretário-geral do PS (ou seria do primeiro-ministro?). Foi no passado dia 19 de Setembro e o secretário-geral do PS veio gritar, num comício das autárquicas, que a Galp precisava de levar uma lição. Ou, se se preferir, um corretivo. Já sabemos que quem se mete com o PS leva.

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A situação repetiu-se, publicamente, na discussão do Orçamento de Estado, na semana passada. Face a uma questão do deputado do PSD André Coelho Lima a propósito do que alegou ser a propaganda abusiva usando o PRR como elemento de campanha eleitoral. António Costa retorquiu: “Não me conhece de parte nenhuma por isso não o autorizo a fazer nenhum juízo moral sobre o meu comportamento”.

A frase é uma forma de grito e toda ela um exercício de demagogia. Primeiro, André Coelho Lima, certamente conhece António Costa de diversos sítios. Depois, a expressão “Não me conhece de sítio nenhum” é uma expressão popular relativa à autoridade para fazer comentários – na vida privada. Na vida pública, o que conta é o que se faz na vida pública. E foi no espaço público, de maneira bastamente documentada pela comunicação social, que António Costa, de Norte a Sul e nas ilhas, usou o PRR como tema principal na campanha eleitoral. Relembro o que André Coelho Lima disse no Parlamento sobre a atitude de António Costa: “desprestigiar a democracia” e “tentar viciar o voto do eleitor”.

Faço minhas as palavras do deputado: a confusão liderada pelo primeiro-ministro no papel de secretário geral do PS, nas autárquicas, entre o Plano de Recuperação e Resiliência, o voto no PS nas autarquias e as decisões sobre financiamento foram maneiras de desprestigiar a democracia e tentar viciar o voto do eleitor.

Não preciso de conhecer António Costa de sítio nenhum para o dizer. Não preciso ter ter jogado à bola na escola com ele, comido francesinhas numa festa em Matosinhos ou andado juntos na JS.

Basta-me ouvir rádio e ver televisão, ir ao smartphone ou ao computador e ver as notícias.

António Costa não tem autoridade para não autorizar coisa nenhuma sobre a liberdade de expressão. Por isso, dizer que não autoriza juízos morais é uma forma de autoritarismo. Ninguém tem autoridade para impedir juízos morais. Os juízos morais são livres, apesar de poderem ser errados. Podem ser justos ou injustos. Mas não existe autoridade individual ou política que possa, em democracia, impedir ou não autorizar um juízo moral.

António Costa não tem autoridade para não autorizar um juízo moral sobre o seu comportamento. No máximo, pode não concordar com ele. Quem anda na vida política está, obviamente, sujeito a todos os tipos de juízo. Um primeiro ministro, sempre. A sua expressão sobre juízos morais é, por isso, manifestamente, um tique autoritário – o juízo moral sobre o comportamento de um político é das coisas mais normais em democracia.

Um juízo moral sobre o comportamento de um primeiro ministro não só é aceitável como desejável. Só faltava o próprio achar que pode não o autorizar!

Se António Costa grita na sua vida privada, se grita com os colaboradores no seu gabinete de São Bento ou do Rato ou coisas similares, não sei, nem me interessa. É coisa da intimidade da vida privada ou do foro das relações profissionais no âmbito do exercício das suas funções.

Mas se António Costa grita em comícios e nessa gritaria quer dar corretivos a empresas privadas ou se grita no Parlamento e quer dar corretivos aos deputados da Oposição, bem, essa gritaria, enquanto cidadão, já me interessa.

É que António Costa não é primeiro ministro do PS ou primeiro ministro da Esquerda. António Costa é o primeiro ministro de Portugal. Enquanto o é, é-lhe exigível um comportamento que mereça o respeito de todos os Portugueses, na dignidade necessária das suas aparições públicas.

Um primeiro ministro não está a vender calças de ganga de contrafação num mercado ambulante ou a fazer um leilão de saleiros na Feira da Ladra.

E como ele próprio já disse, “Já recordei aos membros do Governo que, enquanto membros do Governo, nem à mesa do café podem deixar de se lembrar que são membros do Governo”. Pois é. Por maioria de razão, a regra aplica-se ao Primeiro Ministro.

Por isso, este não se pode colocar na posição de prepotente – como quando falou nos termos que falou da Galp na campanha eleitoral – nem na posição de pregador ofendido a rasgar as vestes, como quando disse o que disse ao deputado André Coelho Lima.

Bem sabemos que a linguagem parlamentar oferece uma certa amplitude inerente ao debate político. António Costa não só o sabe como usa com maestria esta possibilidade. Mas a linguagem parlamentar tem limites.

Por isso, não lhe fica bem o tipo de atitude e declarações rudes que demonstram, nomeadamente, o nervosismo inerente às perdas que o PS sofreu nas autárquicas – nomeadamente, Lisboa, Funchal e Coimbra.

A rudeza não é sinal de força, é sinal de fraqueza.

Bem sei que em Portugal gritar na praça pública e, nomeadamente, usar a fisicalidade, o grito, como forma de afirmação de superioridade política é coisa que se vê em todo o espectro político. Muita gente se intimida com isso.

Mas tal atitude não é exemplo que se dê aos cidadãos. A cidadania exige urbanidade nos atos. Mostrar que o que vale é a troca de argumentos e não quem grita mais alto. Claro que, para isso, é necessário ser capaz de ouvir. E depois de ouvir, responder. Em vez da velha técnica de falar ao mesmo tempo que os adversários para que ninguém oiça nada, de interromper sem cessar para que o sentido das frases se perca, de falar mais alto e agressivamente para mostrar que quem “fala grosso” é que é.

Gritar, pode ser muita coisa, já se viu. Gritar no debate político é, salvo raras exceções, um exemplo de fraqueza ou de chico espertice, ou uma mistura dos dois. Em nenhum dos casos, é recomendável. Muito menos, quando o protagonista da gritaria é quem lidera o Governo do País.

Nada peço ao secretário geral do PS. Ao primeiro-ministro, peço-lhe um comportamento compatível com a função. Já nos chegou um animal feroz a liderar. E sabemos no que deu.